COMUNICADO Nº 002/2018

Considerando os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, razoabilidade e liberdade de expressão; comunicamos que este blogue voltará a ser atualizado apenas em 21 de janeiro de 2019.


Dando tudo por bom, firme e valioso; paramos por aqui.

QUATRO PEÇAS PARA O QUEBRA-CABEÇA DA CONJUNTURA

Não existe fascismo do lado de baixo do Equador

Com o crescimento e o fortalecimento da extrema-direita, um espectro ronda o Brasil e, por extensão, a América-latina: o espectro do fascismo. Sendo assim, não nos resta alternativa senão começar analisando o crescimento da extrema-direita brasileira, movimento que culminou na eleição de Jair Bolsonaro.

O fascismo nasceu na Itália, no começo do século XX, tinha como objetivo central ampliar a produtividade e, consequentemente, a acumulação, colocando o país entre as principais potências imperialistas. Para isso atacou partidos e sindicatos de esquerda; protegeu a indústria nacional; ampliou a produção bélica; desenvolveu ideias racistas para legitimar a invasão de territórios; conquistou posições na África e no leste europeu, garantindo matérias-primas e mercados. Como se vê, o fascismo é essencialmente antiliberal e nacionalista, empregou a mão pesada do Estado para acelerar o desenvolvimento das forças produtivas de uma economia atrasada na corrida imperialista. É quase um capitalismo de guerra, recusa o liberalismo faz-de-conta dos países mais avançados, que não seguem o receituário que pregam. O fascismo tomou e adaptou o Estado às necessidades expansionistas da burguesia industrial italiana.¹   

Se o fascismo é um movimento autoritário para acelerar o desenvolvimento das forças produtivas no interesse da burguesia nacional, em terras tupiniquins o varguismo foi o que chegou mais perto do fenômeno. Atacando partidos e organizações de esquerda, operando numa conjuntura de polarização imperialista, negociando com os dois polos em disputa, Vargas conseguiu dar um passo importante para o capitalismo brasileiro: implantou a indústria de base no país. O melhor exemplo é Companhia Vale do Rio Doce, criada em 1942, e comprometida a exportar minério de ferro para os países aliados, especialmente Inglaterra e EUA. Estes autorizaram e apoiaram a criação da empresa, desde que o Brasil se comprometesse a exportar-lhes a produção, garantindo matéria-prima essencial para a indústria bélica. Além da Vale do Rio Doce, Vargas criou a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Fábrica Nacional de Motores (1943), a Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945) e a Petrobrás (1953).

Mas a burguesia brasileira não teve nem força nem coragem para dar o passo seguinte. Com a instalação da indústria de base, seria preciso instalar a indústria produtora de bens de consumo duráveis, complemento natural da primeira. Mas havia duas barreiras consideráveis: I) Brasil era e é um país atrasado, que não fez sequer reformas burguesas para integrar a maioria da população ao mercado consumidor, dispondo, portanto, de reduzida capacidade de consumo interno (a reforma agrária era e é uma das medidas sempre evitadas pela burguesia brasileira). II) A indústria produtora de bens de consumo duráveis brasileira teria que enfrentar concorrentes estrangeiros já estabelecidos, o que só seria possível se apoiada por um Estado forte e respaldada por uma burguesia disposta peitar interesses imperialistas.

Com exceção de períodos curtos e limitados (varguismo e janguismo), a saída da burguesia brasileira nunca foi o enfrentamento contra o imperialismo, pelo contrário. No final dos anos 1950, com Juscelino Kubitschek, optou-se pelo desenvolvimento associado ao imperialismo, atraindo indústrias estrangeiras para a produção de bens de consumo duráveis, como as montadoras de automóveis. No começo dos anos 1960, com João Goulart, esbouçou-se uma tentativa de realizar reformas para estruturar o capitalismo nacional, eram as chamadas reformas de base, que, no limite, ampliariam o mercado consumidor, viabilizando o desenvolvimento da indústria. A resposta da burguesia brasileira foi o golpe empresarial-militar de 1964, que liquidou o impeto reformista e sacramentou o desenvolvimento associado e dependente: tendo os Estados Unidos como guia e abrindo mão do desenvolvimentismo independente.

Promovido pela ditadura empresarial-militar entre 1968 e 1973, o “milagre econômico brasileiro” teve vida curta, baseado na exploração e no controle autoritário sobre a mão-de-obra abundante, barata e substituível, os limites se impuseram rapidamente: reduzido mercado interno nacional (trabalhava-se muito e ganhava-se pouco), remessas de lucros para o exterior (as empresas produtoras de bens de consumo duráveis eram estrangeiras), crise do petróleo (matéria-prima essencial para o desenvolvimento da indústria), inexistência da produção de bens de capital no país (o crescimento da indústria nacional era dependente de máquinas e equipamentos importados, desequilíbrios na balança comercial aconteciam sempre que a economia crescia).

Como se vê, o pleno desenvolvimento industrial brasileiro dependeria de três passos: I) Implantação da indústria de base para garantir matérias-primas e insumos. II) Desenvolvimento da indústria produtora de bens de consumo, que exige um mercado interno forte. III) Criação da indústria produtora de bens de capital. O processo estancou entre os passos I e II, quando a burguesia optou por atrair e estabelecer empresas estrangeiras em terras tupiniquins, associando-se de forma subordinada ao imperialismo, especialmente estadunidense. Vale lembrar que, no final da ditadura empresarial-militar, arriscou-se o terceiro passo, tentando implantar a indústria de produção de bens de capital, como não poderia deixar de ser, a iniciativa fracassou gerando apenas endividamento para o país.

É sintomático que, para defender que existe fascismo no Brasil, os analistas se limitem a aspectos ideológicos. Exemplo: Safatleafirma que quatro elementos definem o fascismo: I) Culto da violência. II) Não há fascismo sem a ressurreição do Estado-nação na sua versão paranoica. III) O fascismo sempre será solidário com a insensibilidade absoluta à violência com as classes vulneráveis. IV) O fascismo sempre será baseado na deposição da força popular em prol da liderança fora da lei. Quando discutem a base econômica do fenômeno, os analistas são obrigados a falar em “neofascismo”, ou a ressaltar diferenças em relação ao “fascismo clássico”. Às vezes chegam a falar em fascismo neoliberal, que é uma contradição nos termos, se é fascista não pode ser neoliberal. Um fascismo neoliberal seria algo como um socialismo liberal, ou seja, uma contradição nos termos.

O ódio bocó pode gerar fascistas brasileiros, e sabemos que eles existiram, mas, no limite, a burguesia nacional, que prefere ser sócia minoritária do imperialismo, é quem impede a implantação de um regime fascista no país. Não há fascismo se não existe um projeto expansionista da burguesia. Por isso é um erro com consequências graves dizer que há fascismo no Brasil. Um fascista pode ser acusado de muitas coisas, menos de ser lambe-botas do imperialismo. Por essa razão o bolsonarismo não é fascista. Não existe fascismo entreguista.

A opção histórica da burguesia brasileira, imposta pelo golpe empresarial-militar de 1964 e ratificada pelo neoliberalismo, é desenvolvimento associado, como sócia menor do imperialismo. Para haver fascismo precisaria existir uma burguesia nacional disposta a ampliar a acumulação por meio de um Estado forte: interventor, autoritário e capaz de se contrapor ao imperialismo. Essa, definitivamente, não é a opção da burguesia brasileira. O fascismo surgiu na Itália para ampliar a acumulação capitalista e se contrapor aos países imperialistas; o bolsonarismo nasceu no Brasil como apêndice do imperialismo estadunidense, é sintomático que o ex-capitão tenha batido continência para a bandeira dos EUA.

Se é assim, ainda que possam existir fascistas brasileiros, não há sinais de que o fascismo vá se impor em terras tupiniquins. Importante ressaltar que, embora o fascismo não esteja no horizonte enquanto regime, não significa que a repressão e o autoritarismo não estejam em alta e com tendência de crescimento, podendo, inclusive, partir para o isolamento e a liquidação física de forças progressistas. Trata-se, em verdade, de procurar entender o fenômeno para se contrapor a ele. Afinal, sabe-se, desde Sun Tzu, que quem conhece o inimigo e a si mesmo não precisa temer o resultado das batalhas que trava, por outro lado, será derrotado quem não conhece nem o inimigo nem a si mesmo.

Uma coisa é combater um regime fascista, outra coisa é combater um regime neoliberal que apoia grupos de extrema-direita. Segundo a anedota, o Coronel Juan Domingo Perón dava seta para a esquerda, mas entrava para a direita. É o que faz o PT no Brasil ao alardear a ameaça fascista. Se acreditasse realmente no próprio discurso, por que o PT não mobiliza suas bases e aparatos para combater grupos e indivíduos fascistas? Por que o PT não compôs uma frente eleitoral com chances de derrotar o candidato da extrema-direita? A resposta é simples: porque ao PT interessa hegemonizar e manter o cabresto sobre a esquerda sem se contrapor ao regime, e aí vale tudo, inclusive definir um neoliberal como fascista para se manter no páreo eleitoral. Seja como for, às forças que se contrapõe ao regime cabe conhecer o inimigo, é o ensinamento milenar de Sun Tzu.

Maurílio Lima Botelho3 tem uma sacada interessante, associa a estrutura econômica fascista às formas de violência observadas na primeira metade do século XX: produção em massa = assassinatos em massa – trincheiras, infantaria e câmaras de gás. À estrutura econômica do modo de produção capitalista contemporâneo o autor associa padrões de violência “neofascistas”: produção flexível = assassinatos flexíveis – drones, grupos de extermínio e atiradores de elite.

As diferenças na estrutura econômica e nos padrões de violência entre os períodos fascista (na Itália e na Alemanha) e “neofascista” (no Brasil) são gritantes, demonstram que não há continuidade entre os dois fenômenos e, que, portanto, é um erro associar o crescimento da extrema-direita brasileira ao fascismo ou ao “neofascismo” (razão pela qual neofascismo está entre aspas por aqui). Na Itália – e principalmente na Alemanha – se tratava de submeter a classe trabalhadora e povos conquistados às exigências da acumulação de capital. No Brasil atual trata-se de conter e, no limite, eliminar milhões de pessoas descartadas pelo sistema econômico estruturado para garantir lucros ao agronegócio e ao mercado financeiro. No arranjo brasileiro o capital industrial é sócio menor e interligado ao agronegócio e ao mercado financeiro. No arranjo fascista o capital industrial era estratégico.

Se com o fascismo, de Mussolini, tratava-se de tomar e adaptar o Estado às necessidades expansionistas da burguesia industrial italiana; com o neoliberalismo, de Jair Bolsonaro, trata-se de tomar e adaptar o Estado para garantir os lucros do agronegócio e do mercado financeiro, apesar da crise do capital. O que é suficiente para demonstrar a distância que separa um fenômeno do outro.

Era fatal que o faz-de-conta terminasse assim

1947: Sivuca compôs uma valsa para tocar em serenatas. 1976: a valsa foi enviada para Chico Buarque fazer a letra. 1977: a canção João e Maria é gravada por Nara Leão no disco Os meus amigos são um barato, que contou com a participação de Sivuca e Chico Buarque. Como a valsa de Sivuca foi composta quando Chico tinha três anos, ele a associou à infância, e criou uma letra em que duas crianças brincam de serem reis, bedéis, juízes, cowboys e noivas. 2016: ouvi por acaso a canção João e Maria, já tinha ocorrido o golpe que afastou Dilma Rousseff, era época das eleições municipais; mesmo conhecendo a história da canção, me parecia que a letra sintetizava os treze anos de petismo no poder: “Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim, pra lá desse quintal era uma noite que não tem mais fim”. Desconfio que o Chico não endossaria minha leitura, posto que o compositor costuma endossar os governos do PT. Mas uma coisa é certa, nós que criticávamos a política de conciliação de classes há tempos dizíamos que o faz-de-conta terminaria como terminou: fortalecendo a extrema-direita. Para manter o faz-de-conta que não é neoliberal, o petismo desmobilizou a classe trabalhadora, ao fazer isso abriu as portas para a passagem da extrema-direita impulsionada e fortalecida pelas frustrações acumuladas.

A estratégia dos governos petistas foi o faz-de-conta que não é neoliberal. Tratava-se de mudar com os instrumentos tolerados pelo neoliberalismo: ampliação do crédito e programas de renda mínima. Programas de renda mínima, como o bolsa família, levariam recursos para comunidades pobres, que demandariam produtos de primeira necessidade produzidos na própria região, fortalecendo o mercado interno e o emprego. A ampliação do crédito alavancaria o consumo e, por tabela, o mercado interno e o emprego. Tudo isso sem deixar de pagar um real da dívida pública, cumprindo a lei de responsabilidade fiscal, batendo as metas de inflação, gerando superávits primários, garantindo lucros astronômicos a especuladores, sem regulamentar a mídia empresarial, se aliando com partidos fisiológicos, sem fazer reforma agrária, promovendo o agronegócio, sem reverter a desindustrialização do país, sem contrariar o “mercado”, sem passar a ditadura empresarial-militar de 1964 a limpo, sem julgar torturadores, sem desmilitarizar as polícias, sem enfrentar as oligarquias, sem alterar a estrutura política e econômica do país. O faz-de-conta foi infinito enquanto duraram os “anos de ouro das commodities” e a fartura de capitais especulativos, revertido o ciclo, com os preços das commodities em queda livre e sem crédito fácil, do projeto de ampliação do mercado interno restou uma massa de endividados: com medo, com raiva, desempregados, sem esperança e sem condições de consumir.

1947: economistas, filósofos e políticos se reúnem na cidade suíça de Mont Pèlerin com o objetivo de promover o neoliberalismo, doutrina que se opunha ao keynesianismo, política econômica anticíclica segundo a qual os governos deviam compensar os investimentos privados para evitar as crises: diminuindo os investimentos públicos quando a economia estivesse aquecida e ampliando os investimentos públicos quando a economia estivesse desaquecida. No discurso (faz-de-conta) os neoliberais pregam a não intervenção do Estado na economia, na prática é exatamente o contrário, como demonstram os pesados investimentos do governo Reagan na indústria bélica estadunidense.4 1968: do Brasil ao México, de Praga a Paris, as pessoas vão às ruas para protestar, se nos países periféricos a relação não é imediata, nos países centrais, como França e EUA, a contestação é, no limite, contra a sociedade de produção e de consumo em massa. Acende, portanto, a luz amarela para o capital. Nos anos seguintes, com o término da reconstrução da Europa, destruída na Segunda Guerra Mundial, e com o reposicionamento de empresas alemãs e japonesas, acirra-se a concorrência intercapitalista. A resposta do capital foi a reestruturação produtiva por meio do aprofundamento da automação. Grandes investimentos são realizados em setores de ponta: informática, química fina, novos matérias e biotecnologia.4 Paralelamente à reestruturação tecnológica da base produtiva, são desenvolvidas técnicas de gestão de mão de obra mais flexíveis, o fordismo é superado pelo toyotismo. A produtividade crescente exige a ampliação dos mercados.4 Aprofunda-se o fenômeno conhecido como globalização. É quando o neoliberalismo sai da gaveta. O keynesianismo é a política econômica das sociedades fordistas, de consumo e produção de massa; o neoliberalismo é a política econômica das sociedades revolucionadas pela reestruturação produtiva. Entre 1945 e 1970 os ganhos de produtividade foram mais ou menos divididos entre capital e trabalho, com a reestruturação produtiva e o neoliberalismo, o capital avançou sobre o trabalho. 1973: golpe militar no Chile, com a derrubada do governo Allende é ensaiada a primeira experiência neoliberal, o neoliberalismo ser implantando na marra não é mera coincidência. Posteriormente, com o golpe militar, a Argentina faria seu primeiro ensaio neoliberal. Era fatal que o faz-de-conta começasse assim, apesar da demagogia democrática, o neoliberais sabem que, para implantar e sustentar suas propostas precisam de um Estado autoritário. Sintomático o fato do papa do neoliberalismo, Milton Friedman, ter visitado o Chile nos anos mais duros da ditadura Pinochet.5

Construída a partir de fakenews e da desinformação proposital, era difícil ter certeza do que seria o governo Bolsonaro. Eleição ganha, à medida que começam a ser indicados os ministros e a ações, fica cada vez mais nítido que trata-se de um governo que vai tentar concluir a implantação do neoliberalismo no Brasil, projeto deixado inconcluso pelos neoliberais almofadinhas (PSDB) e pelos neoliberais da conciliação (PT). O capitalismo brasileiro está estruturado para garantir os lucros do agronegócio e do mercado financeiro, que, é importante lembrar, são capitais interligados, exemplo: o mercado financeiro oferece Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs), o agronegócio investe em outros “produtos” do mercado financeiro. Daí a santíssima trindade brasileira: metas de inflação, lei de responsabilidade fiscal e superávits primários.  

Metas de inflação para garantir a estabilidade da moeda e a “racionalidade” do sistema econômico. Lei de responsabilidade fiscal para destinar recursos públicos fundamentalmente para o pagamento de juros aos detentores de títulos da dívida pública, especialmente banqueiros. Superávits primários para poupar recursos públicos para pagamento da dívida. Metas de inflação, lei de responsabilidade fiscal e superávits primários compõe a santíssima trindade do capitalismo brasileiro, é o que unifica os gestores da burguesia brasileira: de FHC a Lula, de Dilma a Bolsonaro. O compromisso com a santíssima trindade do capitalismo brasileiro ajuda a explicar por que Bolsonaro não tem condições de organizar um governo fascista, para tanto seria preciso romper com o arranjo destinado a engordar o mercado financeiro e ampliar a acumulação capitalista, especialmente no setor industrial. Mas, como discutimos anteriormente, a indústria brasileira é pouco desenvolvida e está submetida ao capital financeiro, ou seja, também ela reza o terço da santíssima trindade. O capital financeiro não apoiaria Bolsonaro se houvesse qualquer risco de ruptura com a política de metas de inflação, lei de responsabilidade fiscal e superávits primários.

Olhando para trás e considerando que o neoliberalismo começou a ser implantando no Chile e na Argentina, nos anos 1970 e após golpes militares, é possível concluir que não há novidade em Bolsonaro e nos generais que o acompanham, é apenas uma volta ao passado: trata-se de entregar recursos previdenciários de bandeja para o mercado financeiro, liberar mais recursos públicos para pagamento de juros, privatizar estatais e fechar ou repassar à “iniciativa” privada o que resta da educação e da saúde pública. Como sabem que haverá resistência contra o ataque que planejam, aliaram-se a militares entreguistas, os únicos que podem tentar garantir o avanço do neoliberalismo no Brasil. O chicago boy Paulo Guedes é a ponte óbvia que liga o Brasil de 2018 ao Chile de 1973.

Bancarrota blues

Parido em 1947, o neoliberalismo saiu da gaveta nos anos 1970, era um jovem envelhecido de vinte e poucos anos, que radicalizava o discurso liberal de Smith e outros. Sacada de Luiz Filgueiras4: o liberalismo surgiu num momento de expansão do modo de produção capitalista, era, à época, um anúncio da modernidade e da burguesia em ascensão; o neoliberalismo defende o retorno a tempos em que a maioria da população estava excluída do mercado, trata-se de uma doutrina antiga e regressiva em todos os sentidos – econômico, político e social. Ou seja, o neoliberalismo é uma doutrina recauchutada e desenterrada para socorrer o capital.

Outro aspecto fundamental do neoliberalismo foi destacado por Filgueiras4, mas é pouco tratado atualmente: a desigualdade é um valor positivo para os neoliberais, ela seria a base imprescindível para a construção de uma sociedade democrática. É por isso que era fatal que o neoliberalismo de conciliação petista terminasse como terminou: o neoliberalismo exclui a conciliação, se é neoliberal não pode ser conciliador.

Para administrar a desigualdade que inevitavelmente promove, o neoliberalismo aposta em programas de renda mínima. É de Milton Friedman a proposta de criação de programas de “renda mínima”, como o bolsa-família, defendido pelos neoliberais brasileiros, de FHC a Lula, passando por Dilma e até Bolsonaro, este último um pouco contrariado.

O modo de produção capitalista é forçado a se revolucionar incessantemente, no começo a década de 1970 essa necessidade se tornou ainda mais imperiosa. Além das contestações à sociedade de produção e consumo em massa; acirrava-se a concorrência intercapitalista, com o reposicionamento de empresas alemãs e japonesas; a Europa, que havia sido destruída na Segunda Guerra,já estava razoavelmente de pé. Para sobreviver e para se prevenir de contestações o capital foi forçado a aprofundar a automação e a se reestruturar.

É sabido, desde Marx, que vigora no capitalismo a lei da queda tendencial das taxas de lucro. Ao se reestruturar ampliando a automação, o capital substituiu trabalho vivo (homens e mulheres) por trabalho morto (máquinas e equipamentos), no curto prazo e para os que estavam na linha de frente do movimento, houve um pequeno alívio: leve recuperação das taxas de lucro e diminuição das contestações operárias. Mas, como mostrou Marx, à medida que as inovações tecnológicas se espalham, as taxas de lucro tendem a cair, porque só o trabalho vivo (homens e mulheres) gera valor.

A queda tendencial das taxas de lucro nos termos colocados por Marx é o que explica a crise do modo capitalista de produção. Sem inovações capazes de baratear o próprio capital e sem guerras em intensidade suficiente para destruir capitais e possibilitar a retomada da acumulação: o modo capitalista de produção atolou na crise. As sucessivas bolhas especulativas e seus estouros provam que os lucros não encontram possibilidade de ser reinvestidos na produção.  

A reestruturação da economia capitalista e o aumento da produtividade exigiu a abertura de novos mercados, para escoar a produção e reinvestir lucros. É quando aprofunda-se a globalização e a financeirização da economia, uma e outra ligadas umbilicalmente à reestruturação produtiva. O neoliberalismo é a política econômica que articula reestruturação produtiva, abertura de mercados e financeirização no contexto de crise do modo capitalista de produção. Ao mesmo tempo em que desregulamentam os mercados financeiros, para permitir o investimento de capitais que não encontram emprego na produção de mercadorias, os neoliberais estão sempre atentos para salvar bancos e instituições privadas com fundos públicos. É a prova de que o neoliberalismo apenas redirecionou e não aboliu as intervenções estatais na economia. Em vez de compensar os investimentos privados, como sugeriu Keynes, os neoliberais atuam de maneira mais explícita, concedem recursos públicos a instituições privadas, mas dizem que o mercado é redentor e não deve sofrer intervenções. O neoliberalismo administra a economia como se fosse uma família: é um pai sempre pronto para socorrer o filho endividado. 

Curioso notar que, nos anos 1970, enquanto o neoliberalismo avançava no Chile e na Argentina, a ditadura empresarial-militar fazia últimos esforços para modernizar a industria brasileira, era, em verdade, o canto do cisne. O resultado foi a ampliação do endividamento e a derrota definitiva do projeto desenvolvimentista no Brasil. A partir de 1990, com Fernando Collor, cresce a abertura econômica do país. A partir de 1994, com o Plano Real, são fincados os alicerces neoliberais em terras tupiniquins, especialmente a santíssima trindade da economia brasileira: metas de inflação, lei de responsabilidade fiscal e superávits primários. Parênteses: há desavisados que definem o neoliberalismo de conciliação (petismo) como desenvolvimentista, ou não sabem o que é um ou não sabem o que é o outro, se fosse desenvolvimentista e não neoliberal, o petismo não teria rezado o terço da santíssima trindade.

Há uma continuidade evidente entre os governos neoliberais no Brasil. Collor iniciou a abertura econômica e as privatizações. FHC estabilizou a moeda, ampliou as privatizações, definiu metas de inflação, criou a lei de responsabilidade fiscal e tentou gerar superávits primários para garantir o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Lula deu continuidade ao governo FHC, como eram os “anos de ouro das commodities”, ou seja, como os produtos agrícolas exportados pelo país estavam com preços altos, foi possível ampliar os programas de renda mínima e a geração de superávits primários. Dilma assumiu quando a bolha das commodities estava estourando, e já não era possível manter os “avanços” dos anos anteriores, sintomático que, no início do segundo mandato e contrariando tudo que havia dito durante a campanha, a gerentona recorreu a um ministrão ultraliberal para, no limite, cortar gastos e resguardar os pagamentos de juros da dívida pública, que é o eixo principal do capitalismo brasileiro. Temer aprofundou o neoliberalismo: flexibilizou relações de trabalho para favorecer o capital, tentou reformar a previdência para garantir recursos para juros da dívida e congelou despesas públicas por vinte anos. Bolsonaro é uma aposta num governo autoritário para concluir a implantação do neoliberalismo, porque sabe-se que haverá resistência contra privatizações, contra a entrega da previdência dos trabalhadores para fundos privados, contra os ataques aos sistemas públicos de saúde e educação.

A partir de 2014, quando os preços das commodities já haviam baixado consideravelmente, a economia brasileira deixou de gerar superávits primários. Se os pagamentos de juros da dívida pública constituem o eixo principal do capitalismo brasileiro, o fim dos superávits primários foi a luz amarela para a burguesia, e não é coincidência que as primeiras movimentações golpistas tenham ocorrido em 2014. Uma das medidas-chave do golpe de 2016 é o congelamento de gastos públicos, espécie de complemento da lei de responsabilidade fiscal, enquanto esta fixa o volume de recursos que podem ser aplicados em pessoal, custeio e investimentos, aquele determinou que as despesas públicas só podem ser ampliadas de acordo com o crescimento do PIB. É onde se vê a continuidade e aprofundamento do neoliberalismo brasileiro, que foi e está sendo cada vez mais inscrito e fixado no arcabouço legal do país. Nestas condições, nenhum avanço concreto virá sem ruptura. 

Composta nos anos 1990, no auge das privatizações, a canção Bancarrota Blues tem um refrão forte: “mas posso vender, quanto vai pagar?” Chico relaciona riquezas: uma fazenda com casarão, imensa varanda, éden tropical, dá jerimum, dá muito mamão, tem isca pra anzol, nem precisa pescar, muita mulher pra passar sabão, a sombra dos oitis, doces lunduns, diamantes rolam no chão, ouro é poeira, os olhos da amada e os próprios filhos... “Mas posso vender, quanto você dá?” Ao vivo Chico apresenta e elogia a banda que o acompanha: contra-baixo, piano, bateria, percussão, sax, flauta, clarinete, teclado, violão, guitarra. O compositor comenta que se alegra por ser do Brasil e por conviver com os músicos brasileiros. Na sequência retoma o refrão: “mas posso vender, quem vai arrematar?” Como se a banda estivesse em leilão. A imagem ajuda a explicar a conjuntura brasileira: muitas fazendas, dois bancos públicos, universidades federais, previdência da classe trabalhadora, sistema único de saúde... “Ninguém me tira nem por mal, mas posso vender, deixe algum sinal”, “tá ok?” – completaria o ex-capitão.

Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein!

Quando os estudantes secundaristas ocuparam escolas contra a precarização da educação pública, um grito ecou: “Acabou o amor: isso aqui vai virar o Chile.” Era uma referência ao combativo movimento estudantil chileno, referência que já havia sido reivindicada por estudantes universitários brasileiros. Curiosamente e em sentido oposto, é possível pensar que Bolsonaro reivindicaria o “Acabou o amor: isso aqui vai virar o Chile.” A ditadura de Pinochet é a irmã mais velha do governo Bolsonaro. A radicalização do neoliberalismo é o eixo central de ambos. Não é coincidência que apoiadores de Bolsonaro tenham invadido uma assembléia do SINASEFE, em Santa Catarina, para, entre outras ameaças, darem vivas a Pinochet.

Exemplo mais evidente de aproximação entre Bolsonaro e Pinochet é o regime previdenciário por capitalização compulsória, com os trabalhadores recolhendo contribuições que comporão suas aposentadorias no futuro, se sobreviverem à idade mínima. O resultado é conhecido: 90% dos aposentados recebem pouco mais do que 50% do salário mínimo chileno.6 Como se não bastasse, os valores recolhidos compulsoriamente são controlados por fundos privados que cobram taxa de administração. Bolsonaro quer importar para o Brasil o modelo adotado pela ditadura Pinochet. Além disso, não é coincidência que o superministro da economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, tenha sido professor universitário no Chile de Pinochet; que Bolsonaro tenha afirmado que Pinochet “fez o que tinha que ser feito”; que o primeiro país visitado por Bolsonaro provavelmente será o Chile.

O regime de previdenciário de capitalização compulsória é um bom exemplo dos limites da democracia no neoliberalismo: os trabalhadores são forçados a contribuir para fundos privados que administrarão os recursos, mas podem escolher entre fundos conservadores ou arriscados. Ou seja, o regime de capitalização é empurrado goela abaixo, mas é possível escolher o perfil de investimento dos fundos privados. Estes embolsarão lucros gigantes, aqueles arcarão com prejuízos decorrentes de aplicações no mercado financeiro. É a agiotagem legalizada. Muito fácil enriquecer controlando contribuições fixas por décadas, basta emprestá-las, geralmente aos próprios trabalhadores, cobrando taxas muitos superiores às remuneraçõesdos depósitos. É o paraiso da especulação financeira.

Se é verdade que Bolsonaro é um herdeiro de Pinochet, trata-se, apenas, de uma volta às origens autoritárias do neoliberalismo. Em uma conjuntura de aprofundamento da crise capitalista, sem nenhum projeto de desenvolvimento nacional autônomo, só resta à burguesia uma solução de força para garantir, pelo menos, os lucros do agronegócio e do mercado financeiro. Solução de força que implica em cancelar conquistas dos trabalhadores, como o sistema único de saúde, os direitos trabalhistas, a previdência e as universidades públicas.

A crise atual é de sobreacumulação de capital e não de superprodução de mercadorias. No limite é a sobreacumulação do capital que impede o reinvestimento dos lucros na produção de mercadorias, daí a guinada para o mercado financeiro e a especulação. A história mostra que o capital consegue girar apesar da estagnação do mercado consumidor, a ampliação deste é uma necessidade para o crescimento daquele, mas não para a sobrevivência. Dito de forma mais direta: a ampliação do mercado consumidor é condição necessária para a expansão e não para a sobrevivência do capitalismo, a produção de bens de consumo pode ser reduzida sem liquidar o capital, porque ele consegue girar impulsionado pelo que resta da produção de bens de consumo, pela indústria bélica e pela produção de bens de capital. Por outro lado, à medida que a economia é cada dia mais automatizada e que cresce a composição orgânica do capital, reduzem-se as taxas de lucro e o emprego, obrigando os capitalistas a marcharem sobre conquistas sociais e direitos dos trabalhadores. O que são os regimes previdenciários de capitalização senão formas de aprofundar a exploração garantindo lucros do mercado financeiro? O que significa a flexibilização de direitos trabalhistas senão maior apropriação da mais-valia?

O ataque da burguesia brasileira contra conquistas sociais e direitos dos trabalhadores é evidente. Revertidos os “anos de ouro” das commodities, foi preciso enxugar os programas de renda mínima redirecionando recursos para o capital, movimento sintetizado na indicação do ultraliberal Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda no final de 2014, antes do início do segundo mandato e contrariando toda campanha eleitoral de Dilma Rousseff. A militarização da sociedade é o movimento complementar e, registre-se, se aprofundou no primeiro mandato de Dilma com a lei antiterrorismo, a repressão ao levante de junho de 2013 e aos protestos contra a Copa. Qual era o objetivo do ultraliberal indicado pelo governo Dilma para comandar o Ministério da Fazenda? Garantir o superávit primário! O golpe de 2016 foi, fundamentalmente, uma tentativa de restabelecer o superávit primário, Temer conseguiu aprovar congelamento de gastos por 20 anos, mas faltou a reforma da previdência. Bolsonaro é uma cartada na mesma direção, acena com a reforma da previdência para restabelecer o superávit primário e a tigrada para manter a ordem. Há dois fatos que demonstram inequivocamente que acabou o “amor” para a burguesia brasileira: I) Prenderam Lula, o grande conciliador, o que aponta que nem as políticas neoliberais de renda mínima serão toleradas. II) Bolsonaro acena com a extinção do Ministério do Trabalho, pasta criada por Vargas para, no limite, tentar conciliar trabalho e capital no interesse da acumulação deste último. Além de abrir mão de políticas de geração de emprego, extinguir o Ministério do Trabalho significa enquadrar e limitar a fiscalização do Estado sobre as condições de trabalho, exigência do capital em tempos de crise.        

Um dirigente petistarelatou um caso ocorrido na última eleição. Em campanha eleitoral a militância aborda uma senhora negra, entrega um panfleto e diz   “Haddad”. A senhora responde “Gosto muito de vocês, mas vocês vão quebrar o país.” Eles – “Vamos quebrar o país por quê?” Ela “Vocês estão querendo aumentar o salário mínimo e o bolsa família.” Nesse ponto o dirigente petista precisou entrar na conversa “Mas minha senhora, o que a senhora é?” Ela “Sou empregada doméstica.” Ele “Mas se a senhora é empregada doméstica, olha aqui a posição do Bolsonaro sobre os direitos das empregadas domésticas.” Ela “Essa posição do Bolsonaro tá certa, essa coisa de você querer dar direitos tira nossos empregos, olha quanta gente tá desempregada, cê acha que um professor vai conseguir pagar os direitos de uma empregada doméstica?” Ele “Minha senhora, eu sou professor e tô nesse caso, eu pago os direitos.” Ela “O senhor, mas a imensa maioria não, a imensa maioria não contrata e a gente tem desemprego por causa disso.”  Ele “Mas minha senhora...” Ela: “Insisto. Gosto muito de vocês. O Haddad é muito legal. Mas vocês vão transformar o Brasil numa Venezuela.” Ele “A senhora tá querendo voltar pra época da escravidão?” Ela para no meio da rua, olha para o dirigente petista e, antes de partir diz “Meu filho, esse país sempre foi e sempre vai ser desigual!”

Com a mente travada na política de conciliação de classes, o professor e dirigente petista não consegue tirar todas as conclusões do diálogo com a empregada doméstica, pensa apenas em termos da batalha cultural que deve ser travada. Afinal, Bolsonaro sempre disse que os trabalhadores terão que “decidir entre menos direitos e emprego ou todos os direitos e desemprego”. A cegueira petista não permite enxergar que, se é para manter o capitalismo, se é para administrar o capital em crise, se vão continuar existindo professores universitários que contratam empregadas domésticas, o argumento dela é muito mais coerente do que o dele. Se o capital em crise será forçado a reduzir os benefícios e proventos dos assalariados, é óbvio que professores terão mais dificuldade para contratar empregas domésticas pagando direitos trabalhistas.

É nas situações históricas complicadas que se impõem as alternativas. O diálogo entre o dirigente petista e a empregada doméstica é sintomático. Para construir a resistência e a afirmação para além da eleição de um candidato a gestor do neoliberalismo, o primeiro passo é dialogar, e a condição é saber ouvir. Reproduzir acriticamente mantras do neoliberalismo de conciliação não vai resolver absolutamente nada. O segundo passo é recolocar o socialismo na ordem do dia. Primeiro teria que concordar para depois discutir o último argumento da senhora: sim, o Brasil sempre foi desigual, mas não necessariamente o será para sempre, os trabalhadores precisam tomar o controle dos meios de produção e da própria vida, inclusive porque o capital coloca em risco o ecossistema e a sobrevivência da humanidade. Teria que discutir a herança escravista brasileira e lembrar do crescimento de grupos de extrema-direita que atacam negros, gays e nordestinos; neste contexto e para garantir a integridade física dos nossos, será necessário criar comitês de autodefesa. Teria que defender a possibilidade de existência de um mundo que não se divida entre burgueses e proletários, professores universitários e empregadas domésticas. Enfim, o dirigente petista teria que se colocar como um igual disposto a superar a herança escravista do país, a divisão em classes e o capitalismo, é o que ele jamais fará.

Era previsível que a extrema-direita avançaria quando viesse a crise e se esgotasse o neoliberalismo de conciliação. Da mesma maneira, é previsível, porque inevitável, que a classe trabalhadora resistirá aos ataques da extrema-direita, tal movimento começa a acontecer, estão surgindo comitês de luta nos bairros, locais de trabalho e estudo. Recolocar a radicalidade por baixo, pela e para a esquerda é tarefa dos revolucionários, porque não se constrói uma casa a partir do telhado. Será incomparável a derrota se o petismo (neoliberalismo de conciliação) conseguir dirigir a resistência conduzindo-a para a defesa de valores democráticos, que não vão existir no neoliberalismo, ainda mais em uma conjuntura de crise do capital. O petismo defende os valores democráticos assim como a direita se apresenta com anticorrupta, ambos sabem que o neoliberalismo é corrupto e antidemocrático, mas se valem do faz-de-conta engana-trouxa. Por outro lado, será um avanço se a classe trabalhadora conseguir esboçar um projeto de poder a partir de baixo e pela esquerda.

O neoliberalismo almofadinha (PSDB) está tão superado quando o neoliberalismo de conciliação (PT), o que não significa que não possam ganhar eleições, mas sinaliza que, para gerenciar o capital em crise terão que atuar com porrete e mão de ferro, numa intensidade muito maior do que fizeram. Nesta conjuntura, o retorno às origens autoritárias do neoliberalismo se torna inevitável para a burguesia, que apresenta suas armas: governo forte e militarizado para garantir lucros do capital, contenção e, no limite, eliminação de opositores, desde a esquerda organizada até os excluído dos mercados de trabalho e consumo. Se é assim, só resta à esquerda e à classe trabalhadora recolocarem o socialismo na ordem do dia, de baixo para cima e pela esquerda, aliando ocupação de espaços de moradia e de produção com a autodefesa, forjando a superação do modo capitalista de produção. A democracia de verdade só pode existir se a resistência avançar e derrotar o neoliberalismo. Defender os valores democráticos é fortalecer a auto-organização da classe trabalhadora por baixo e pela esquerda.

Milan Kundera cita um quarteto Beethoven em que dois homens dialogam. Um – Muss es sein (tem que ser assim)? Outro – Es muss sein (tem de ser)! Outro – Es muss sein (tem de ser)! Outro novamente – Heraus mit dem Beutel (abra sua bolsa)! No original tratava-se de um diálogo em que um homem pede para que outro lhe pague uma dívida. Na conjuntura atual soa como um imperativo (es muss sein!) do capital em crise, que precisa ampliar a expropriação de mais-valia: abra sua bolsa! Se é assim, o imperativo (es muss sein!) da classe trabalhadora é o socialismo: sem mistificações, sem recuos, sem dúvida!

REFERÊNCIAS

1 Costa, A. de B. NÃO EXISTE FASCISMO NO BRASIL. Disponível em: http://www.iela.ufsc.br/noticia/nao-existe-fascismo-no-brasil Acesso em: 29 out. 2018.

2 Safatle, V. O QUE É FASCISMO? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_ypurfdlPmU Acesso em: 31 out. 2018.

3 Botelho, M. L. TECNOLOGIA E NEOFASCISMO. Disponível em: https://blogdaconsequencia.com/2018/10/24/tecnologia-e-neofascismo/ Acesso em: 01 nov. 2018.

4 Filgueiras, L. A. M. REESTRURURAÇÃO PRODUTIVA, GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO: CAPITALISMO E EXCLUSÃO SOCIAL NESTE FINAL DE SÉCULO. Seminário O Mal-Estar no Fim do Século XX, p. 895-919, 1997. Disponível em: http://www.cefetsp.br/edu/eso/globalizacao/neoglobliberalismo.pdf Acesso em: 27 set. 2015.

5 Estefanía, J. ESCOLA DE CHICAGO FLORESCE NO AUTORITARISMO. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/26/internacional/1540555749_404186.html Acesso em: 29 out. 2018.

6 Reverbel, P. COMO É SE APOSENTAR NO CHILE, O 1º PAÍS A PRIVATIZAR A SUA PREVIDÊNCIA. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39931826 Acesso em: 11 nov. 2018.

como fruta
no cesto

como planta
no vaso

como água
na poça

como merda
na fossa
Casa de Carlos Drummond, Itabira/MG


CARTA PARA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Carlos, hoje é 31.10. Dia do halloween nas escolas de capitulação. Dia do Saci nas escolas de resistência. Mas te escrevo porque aniversarias, nasceste em Itabira/MG, em 31.10.1902. Tomo a liberdade de utilizar teus versos.

Às vezes desejavas “por fogo em tudo”, inclusive em ti, “ao menino de 1918 chamavam anarquista”, teu ódio é libertador. Outras vezes desejavas “viver para sempre e esgotar a borra dos séculos”. Mas, por “haver disposto o essencial, deixando o resto aos doutores de Bizâncio”, voaste “para nunca-mais” em 17.08.1987. Eu tinha 8 anos, não te conhecia, apesar do “e agora, José?” que minha mãe pronunciava nas horas de dificuldade.

Houve um tempo, Carlos, em que foste uma pedra no meu caminho, como se a poesia só estivesse contigo, como se a palavra poeta só valesse para ti, mas passou. Aprendi a gostar do chileno Neruda, do maranhense Gullar, do pernambucano Cabral, do pantaneiro Manoel de Barros... Melhor assim. O Brasil é mesmo cheio de poetas e de pedras no meio do caminho: Itanhaém (a pedra que canta), Itaporanga (a pedra bonita), Itatinga (a pedra branca), Itapoema (a pedra da poesia?), Itabira (a pedra que brilha)...

Estive em Itabira novamente, tua casa-museu estava fechada para reformas. Certa vez um vigia me disse que havia uma pedra no meio da rua, entre a tua casa e a escola em que estudaste. Foi por isso que escreveste “No meio do caminho”? Tudo tão simples? Os “doutores de Bizâncio” e das academias perderam tanto tempo e não enxergaram o óbvio? Uma simples pedra no meio do caminho da escola e nada mais? Toneladas de análises e nada? Ou a história da pedra no meio da rua foi um gracejo do vigia do museu? Aquele vigia era uma espécie de Tutu Caramujo do século XXI?

Foste um “anjo torto”, Carlos, um zombeteiro que ria da academesmice. A Academia Brasileira de Letras (ABL) deve te homenagear hoje, Carlos, e eu fico rindo porque recusaste a ABL e a imortalidade, com teus braços magros, mandaste uma banana para os imortais.

Mas nem tudo é riso, ou melhor, o riso é pouco, o riso é parco. Preciso falar de dor e lamento. Carlos, as mineradoras limaram o brilho das pedras e cortaram os morros da tua cidade. Itabira é uma pedra retalhada. Minas desaparece de baixo do pó da mineração, “Minas não há mais”. O pó cobrirá os profetas do Aleijadinho e as igrejas de Ouro Preto.

“O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.” “Não veio a utopia”. Não veio o tempo da vida sem mistificações. Nenhuma flor nasceu na rua. O homem não liquidou a bomba. “A noite desceu. Que noite.” “A noite dissolve os homens”. Dezenas de homens executados todas as noites nas capitais do país. Os esquadrões da morte tomaram as ruas, tomaram as noites. “Existe apenas o medo”. “O medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas.” E o medo da morte, o medo dos esquadrões da morte. Uma rua começa no Rio de Janeiro e vai dar no cemitério, por esta rua passam meus irmãos. “Haveremos de amanhecer”? Quando? Teremos que adiar a felicidade coletiva por mais um século?


Carlos, e agora?





POEMINHA ELEITORAL

eleição
só muda
o eleito

eleição germina
é muda
de nada

eleição se cala
é muda
de tudo

eleição se faz
e nada
muda


Oswaldo Goeldi: Mulher despejada.


RICARDO

"Como as grandes obras, os sentimentos profundos sempre significam mais do que têm consciência de dizer." 
(Albert Camus)

Morre o rato, o gato, o pato, o homem... Morrem bandidos, heróis, canalhas, velhos, crianças... Todos morrem. E o rapaz morreu, pelas próprias mãos, talvez “como um cão”, como Joseph K.

De um amigo poeta ouvi que “o suicídio é a coragem para a burrice”. O senso-comum ensina que se matar é um ato de covardia. À parte as reflexões ideológicas, é certo que, para o suicida, o custo de viver é maior que o benefício. Para ele a vida é formada por muitas desgraças e pouca ou nenhuma alegria. Pelo menos no tempo e espaço do gesto definitivo. E “o tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera”, como escreveu outro poeta, o mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Nesse tempo, o desaparecimento de uns é alegria para fofoqueiros e sensacionalistas. Falam em doenças incuráveis, dívidas impagáveis, desgostos profundos, amores perdidos, chifres, drogas, desilusões, falta de religião, educação ruim, fim dos tempos, pecados, pais ausentes, amizades ruins etc., etc. Enfim, o fim de uns conforta outros, que, apesar dos pesares, vão vivendo.

O trágico na vida humana não é exatamente a morte, trágica é luta dos indivíduos impotentes contra o destino inevitável: a morte. O que tortura é o envelhecimento diário, presságio do desaparecimento final. Queda de cabelos, queda de dentes, perda de memória, perda do tesão, rugas, dores, depressão, angustia, nostalgia.

Pior que isso é o aniquilamento abrupto de alguns. Uma criança brincando, um caminhão desgovernado... Um rapaz toma umas a mais, atravessa, não vê o carro vindo...

Rigorosamente falando, vida e morte são partes de um mesmo todo. Uma pedra não morre. Da mesma forma, é inconcebível a vida sem morte, já que vida, por definição, é o período que vai do nascimento até a morte.

Dessas linhas se conclui que a vida é dura e a morte também. E as duas continuarão assim. Apesar daquele rapaz, que se matou. Mas se matar é mais que isso. Ele não percebeu, os fofoqueiros não fuxicaram a respeito. Se matar é, de certa forma, amputar um pedaço do criador, que nada criou. Ou melhor, se matando o suicida aniquila a idéia de criação, do sagrado e de paraíso. Já que, indiretamente ele afirma: Foda-se a vida e todas as bostas desse e de outros mundos.   
RICARDO

Morre o rato, o gato, a barata.
Morre o velho, o homem, a criança.
Tudo morre.
E o rapaz morreu,
pelas próprias mãos,
“como um cão”,
como Josefh K.

Para o poeta:
matar-se é a coragem para a burrice.
Para o economista:
o custo de viver é maior que o benefício.
Mas a mãe não pensou nada,
nem o pai.

Foi numa tarde de domingo,
ele extinguia-se
com a noite que descia.

Apenas o irmão avança
(os pais param na porta: paralisados).


Miram-se os gêmeos,
Um no terno de culto,
o outro enforcado na corda.
Sem desespero:
os olhos se procuram,

tranquilos.
Um tiro seco inviabilizaria aqueles olhares
e aquele silêncio.
Fim.