São Paulo: A Paulista Reconquistada

Depois do bloqueio policial da última quinta, a Paulista foi reconquistada pelos manifestantes. Faria Lima tomada nos dois sentidos, Juscelino idem.  Gente na marginal. Gente na porta do governador. Gente na porta do prefeito. Gente subindo sem parar pela Brigadeiro, um rio de gente correndo de baixo para cima, por um lado num dia e pelo outro no outro. E a tropa assistindo pela TV. O número total de manifestantes é incalculável, mas se a parada gay coloca 4 milhões de pessoas entre a Paulista e o Centro de SP, a parada dos últimos dias colocou muita gente também, porque tinha gente do Itaim à Paulista (na segunda) e do Centro à Paulista (na terça). Ou a parada gay não é tão grande, ou a parada desses dias não é tão menor.

A massa cresceu e com ela a verde-amarelice e o risco. Outros povos saudaram o despertar do povo brasileiro, o povo brasileiro não saudou outros povos. O internacionalismo não se apresentou. Ao mesmo tempo em que se rechaçava a rede globo, se cantava o bordão “sou brasileiro com muito orgulho...”

Faltou poesia. Faltou o “alargador de horizonte” do poeta Manoel de Barros. Na segunda-feira a politização veio com o grupo que foi para o Palácio do Governo, porque o Sr. Alckmin é a personificação da violência policial, da direitolice e da privatização dos sonhos. Rechaçar o Sr. Alckmin é rechaçar o que há de pior.

Se gritava “Ooooo, o povo acordô, o povo acordô”; falta o povo sonhar. É preciso desprivatizar os sonhos. É preciso sonhar coletivamente. Verbalizar o rechaço é necessário.

Um mundo cheio de carros e consumismo não nos contempla. Um mundo tão cheio de eletrodomésticos e tão vazio não nos contempla. Um mundo tão cafona e careta não nos contempla. Um mundo cheio de shoppings e sem hospitais não nos contempla. Um mundo tão cheio de estádios e sem escolas não nos contempla. Um mundo tão cheio de celebridades e tão feio não nos contempla. Um mundo tão siliconado como burro não nos contempla. O mundo capitalista não nos contempla.

O aumento da tarifa e a violência policial levaram o povo para as ruas. A azedice do mundo capitalista engrossou o caldo. Como avançar? Que fazer?

O desafio é propor na segunda pessoa do plural. Chegou a hora da verdade para a esquerda de verdade, é agora ou sabe-se lá quando. É preciso colocar o socialismo nas bandeiras, palavras de ordem e nos corações. O transporte é caro e ruim porque é privatizado e organizado para dar lucro para a burguesia. A saúde idem. A educação idem. E assim sucessivamente. Dezenas de milhares de pessoas tem que perder para que um punhado ganhe. Dos transportes às comunicações, da educação ao agronegócio: capitalismo é isso aí. Tem um burguês feliz com o aumento da tarifa. A tropa resguarda um punhado de burgueses, mas não se enxerga essa verdade elementar no meio do gás lacrimogêneo. A tropa sumiu das ruas de SP para esconder essa verdade inconveniente. Os políticos profissionais são funcionários de um punhado de burgueses, mas essa verdade ainda se esconde atrás das gravatas.

O povo acordou e está nas ruas. Faltam os sonhos e a utopia. O futuro está escondido atrás dos prédios de SP, o socialismo de um lado e o fascismo do outro: o tempo responderá.

Fora Fifa!
Tarifa zero!
Abaixo as privatizações!
Abaixo a repressão!
Abaixo a grande mídia!
Abaixo o estado capitalista!
Abaixo o capitalismo!

Viva o poder popular!
Viva o socialismo! 

Passe Livre para a Luta

Virada Cultural, maio de 2013, uma sensação: a cidade vai explodir. Faltava uma fagulha, que veio pouco depois, foi o aumento das tarifas. Outra sensação: grandes incêndios podem nascer de pequenas fagulhas.

Quinta-feira, 13 de junho (13J), sirenes e barulho de helicópteros o dia todo. Vou cruzando a cidade a pé. Levo comigo a sensação de que eles (burguesia, grande mídia, polícia e Estado) estavam vencendo a batalha política, fazendo passar a versão de que os manifestantes contra o aumento das passagens são vilões e eles mocinhos.

Chego na Praça Ramos pela Xavier de Toledo, o aparato policial bloqueia o Viaduto do Chá para impedir o acesso à Prefeitura: são uns vinte “homens” do choque, algumas viaturas e motos. Manifestantes detidos são levados para o outro lado do Viaduto, apesar da manifestação já ter avançado. Quem foi pego com vinagre foi pro vinagre. Vinagre virou crime.

Me oriento pelo movimento dos helicópteros midiáticos e pelas informações da população. Corto para a Praça da República, encontro o Ato um pouco à frente: com as costas na Ipiranga e o peito na Consolação. O aparato policial é disparatado, a manifestação é pacífica. Chego a pensar que a violência policial não daria a cara, porque seria um tiro no pé deles, a mídia estava presente e a manifestação era claramente pacífica. Minha ilusão durou 100 metros e 10 minutos. Os “homens” da lei (do capital) fecham a Consolação, uma coluna de “homens” com escudo corta a manifestação pela direita, explodem as primeiras bombas (esse começo foi amplamente divulgado e é incontestável). A manifestação grita “sem violência”, a polícia atira bombas. É o começo da nossa vitória moral e política. Os mocinhos atiram bombas enquanto os violões gritam “sem violência”? Não cola. Dezenas de vídeos mostram quem são os vândalos, os bárbaros, quem começou, quem é violento...

“A burguesia fede” e peida gás lacrimogêneo, são peidos explosivos, com som de bomba. O fedor é insuportável. Desespero. Não vejo nada e não sei para onde ir. Desço para a Amaral Gurgel. Encosto na parede e tento respirar. Mais peidos. Tento encher o peito de ar, dobro a esquina para a Cesário Mota. Um companheiro (ou companheira) não consegue correr, é cercado (ou cercada) e apanha dos fardados. Agonia. Que agonia. Um companheiro ou companheira apanha porque ficou para trás. Impotência e revolta. Bombas e viaturas circulam em alta velocidade. Muito gás. Me abrigo num bar. Um homem bebe cerveja e defende a violência policial. Não digo nada, apenas olho nos seus olhos. Esse homem recalcou toda a história do Brasil, toda violência e todos massacres, tem tanto medo da polícia que passou a amá-la, tem ódio dos que o fazem lembrar daquilo que ele recalcou, é a ética da servidão: amar o opressor sobre todas as coisas e a ordem como a si mesmo. O aparato militar disparatado serve para isso: dissuasão, internalizar a repressão e o medo. A ética da servidão corre nas veias daquele homem, ele vive embriagado pela ética da servidão. Lembro-me das palavras de Euclides da Cunha: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.” Porque não suporta seu temor pelos 5 mil soldados, o homem embriagado pela ética da servidão transforma seu medo em amor, é um amor medroso e covarde.

Viaturas e sirenes arrancam, freiam e derrapam. Barulho insuportável. Bombas. Medo. Mas um copo salta de algum prédio para o teto de uma das viaturas, e estilhaça, nem todos são seguidores da ética da servidão.

Recuperado, tento avançar para a Avenida Paulista: Frei Caneca fechada pelos “homens” de farda, Augusta, Bela Cintra e Consolação idem. Os “homens” da lei do capital param a cidade. Vou sendo empurrado para Higienópolis. De dois apartamentos a burguesia higienopolista nos xinga, porque o barulho de bomba atrapalha a novela. Gás lacrimogêneo sobe para os apartamentos higienopolistas: a burguesia experimenta seus próprios gases.

Um garoto desce carregado, ajudo como posso, ele se recupera uns dois quarteirões depois, fica em pé com as próprias pernas e diz que quer voltar, que quer lutar até a morte.

Tento subir novamente a Angélica rumo à Paulista, vou pela calçada da Praça Buenos Aires. Bombas. Gás. “Homens” com escudos descem a Angélica. Todos correm. O inusitado acontece: um sujeito com fones de ouvido se exercita, faz cooper, corre na direção das bombas, alheio à situação, alerto-o, ele vira e dispara, me ultrapassa e some.

Encontro um grupo de manifestantes, mais ou menos quinhentos, eles dizem que os “homens” de farda estão cercando a região. Sigo com o grupo por alguns quarteirões. São quase 21:30. Estou exausto. Apesar do risco, me separo do grupo e me retiro sozinho. Encontro uma viatura da tropa de elite de SP, aquela que arrota morte, pneus e rodas brilham no escuro, impecavelmente polidos com a cera da morte. Sigo em frente na rua escura.

Resultado final: centenas de presos, jornalistas agredidos, não manifestantes baleados, dezenas de feridos. Mas a verdade explode em vídeos e fotos: policiais quebrando o vidro da própria viatura, atirando em jovens ajoelhados e em moradores que filmavam de suas casas. Uma denúncia para cada bomba. De um lado gritos de “sem violência”, do outro bombas. A força bruta dos cassetetes e microfones perdeu a luta política, os microfones da grande mídia não puderam redimir os cassetetes. Os mocinhos fardados da burguesia apareceram de cara limpa, como são: repressores.

Nos olhos cheios de lágrimas e orgulho de todos se lia “amanhã vai ser maior”. E vai mesmo. Pequenas fagulhas podem causar grandes incêndios, especialmente no solo seco de São Paulo. A impressão é que o problema não é só o aumento nem só o transporte público precário. É tudo isso e muito mais. Os gestores da burguesia, se tiverem siso, recuarão (e assim ganharão algum tempo), se não... Ninguém sabe o que pode acontecer. “Amanhã será maior”. O escudo não pode conter o oceano.

Última sensação: a revolta e a solidariedade dos manifestantes e o tamanho da repressão me fazem pensar que esse 13 de junho pode marcar a virada da maré, pode colocar o Brasil no mapa dos levantes mundiais.

Allende: “não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos.” Novamente se abrem grandes alamedas para a passagem do homem livre, como previu Allende há 40 anos. Parafraseando Drummond: Uma rua sai de São Paulo e vai dar em qualquer lugar do mundo. “Ó abre alas que eu quero passar. Eu sou da lira, não posso negar”

E por fim. Ernestito, felicitaciones por su cumpleaños.



São Paulo, 14 de junho de 2013






Porto Alegre, 25.02.2011, um motorista avança sobre ciclistas que se manifestavam na via pública, bicicletas e ciclistas são lançados para o alto, o motorista foge. A cena é bárbara. Imagem registrada: comoção geral. O motorista foi identificado e responde por 11 tentativas de homicídio.  

São Paulo, 11.06.2013, um motorista avança sobre manifestantes que tentavam bloquear um via pública, os manifestantes são lançados para o alto, o motorista foge. A cena é bárbara. Imagem registrada: comoção nenhuma. O motorista pode ser facilmente identificado, há milhares de câmeras em SP, mas nada foi feito.

Por que a indiferença? Qual a diferença? Por quê?