O Último Samba

ao camarada JC

A epígrafe do poeta nos mostra que, como tudo o mais, nossa polêmica não é nova. Talvez seja parte do peso da vida essa eterna reedição, e talvez essa condição seja a parte que nos cabe da rocha de Sísifo. É necessário ainda um comentário sobre o verso do poeta: é profético quando enfatiza que emergiremos do dilúvio, concluindo que escaparemos de tempos sombrios. Um poema não é mesmo espaço adequado para debates, claro. Por isso não me cabe cobrar o poeta. Mas isso não me impede de dizer que o verso não discorre sobre o fato de que essas fraquezas das quais ele mesmo fala no verso podem justamente reabrir as portas dos tempos sombrios. Levasse esse fato em consideração e o poeta alteraria seu verso. Teria Brecht, ao falar das fraquezas da religião, lembrado que elas prometem nos salvar? Se nada há de novo sob o sol, as primeiras experiências humanas viveram a advertência do poeta, porém a história nos mostrou que os bons ideais não nos podem garantir absolutamente nada, quando não nos assegura mesmo o contrário de seus desejos (e a esse respeito a história é sobejamente farta). O belo verso do poeta não deixa de ser vítima do kitsch quando, ao se dirigir àqueles que falam de suas fraquezas, pede que se lembrem antes que ele quer os livrar do mundo no qual naufragou. É como Cristo quando dá a outra face a seu algoz, e isso apenas fortalece o ponto de semelhança entre a religião e a ética ideológica no qual tocarei ao longo do texto. Essa ressalva naturalmente enfraquece a crítica, e, como kitsch, tende a colher o apoio da massa (que corresponde sempre ao kitsch) que assiste. Em outro verso do mesmo poema, porém, o poeta, quase se arrependendo dessa ‘fraqueza’, diz: "Entretanto sabemos/também o ódio à baixeza/ deforma as feições/também a ira pela injustiça/torna a voz rouca". Bem, o verso de sua epígrafe tem o seu lugar, mas não creio que seja quando se discute criticamente, menos ainda quando nosso apreço à verdade nos dispõe a cortar a própria carne. Ou, como Édipo, a furar os nossos olhos.
Para os comentários a seguir me deterei exclusivamente em seu texto e no que julguei ter compreendido. Procederei dessa maneira porque, tendo nos encontrado há pouco tempo, falamos sobre esse assunto, porém com a cara cheia de birita, o que colaborou para que eu não me lembrasse de tudo. Assim, caso eu tenha ‘atropelado’ qualquer coisa referente a essa conversa, tenha a caridade de considerar essa persistência da falta de memória.

Di Cavalcanti: Samba (1925)

Da Leveza ao Peso, da Existência à Essência, do Positivo ao Negativo

Creio que há alguma confusão sobre as opiniões de Kundera. Concordo com você quando afirma que “Kundera apenas reproduz opiniões de terceiros (Nietzsche, Parmênides, Beethoven), ele próprio não responde a pergunta que formula”. Mas concordo em parte. Se pensarmos no título da obra, A Insustentável Leveza do Ser (e vamos manter, por ora, a versão da tradução brasileira), podemos imaginar como seria se Kundera houvesse escolhido o peso para titular a obra. Seria algo como “O Sustentável Peso do Ser”. Dessa forma não alteraria o sentido que o autor deu ou como apresentou a obra, porque os dois títulos mantêm o mesmo sentido. Não há, portanto, a afirmação de que o ser seja leve, mas há uma ideia defendida: de que a leveza é insustentável, assim como o peso é sustentável. Se estamos falando de peso e leveza sob uma perspectiva existencial, as vidas sem razão, sem âncora e que boiam perdidas estão no estado de leveza; as vidas devidamente ancoradas, ou melhor, as vidas inteiras e a história, estão em seu estado de peso. Se Kundera sabe que a vida, o acordo categórico, depende do peso, e se expõe isso na vida de seus personagens, tão reais quanto a história que os envolve, não há, absolutamente, a afirmação da leveza em relação à vida segundo uma lógica aristotélica, como proposição absoluta e excludente. E assim, não há contradição na obra que não seja da vida representada nela. Nele não há uma apropriação sufocante da vida. No 2º parágrafo do 1º capítulo Kundera descreve: “O mito do eterno retorno nos diz, por negação, que a vida que vai desaparecer de uma vez por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor, não têm o menor sentido.[...]” Kundera expõe a ideia do eterno retorno, de Nietzsche, de forma a ilustrar, por negação, o caráter atenuante de uma vida vivida uma única vez, sem esboço que a anteceda e sem remissão. A ligação desse caráter atenuante da vida com a leveza está no fato de que ela flutua desprendida de qualquer motivo que a transcenda ou que a condene. Aliás, é justamente por isso que o Gênese não é a fonte do acordo categórico com o ser, mas exatamente o contrário, e disso falo mais adiante. Leveza é então um estado primal e geral da vida; para o peso, é necessário realizá-lo; para a leveza, o estado, digamos, “natural” de uma vida sem o eterno retorno, não. Assim voltamos a Parmênides: se para ele o leve é positivo e o pesado negativo, Kundera não altera essa perspectiva (considerando a ambiguidade dos conceitos): o peso existe como negação da leveza, estado “natural”, ou positivo, da vida. Se a vida é destituída de significado fundamental e transcendental (figurado na ausência do eterno retorno), seu estado “natural”, digamos dessa forma, é a leveza. O peso parte da leveza, e é só assim que a leveza é uma condição do ser na obra de Kundera, assim como é dessa forma que o peso é uma escolha, ou melhor, a escolha. A leveza está para o peso assim como a existência está para a essência. Para que eu escolha a leveza, basta que não escolha o peso. Da ausência de razão fundamental e geral da espécie para o sentido particular de cada ser, esse das meras obrigações ao mais raso clichê e ao mais nobre dos sentimentos. A vida, para adquirir peso e sentido, precisa descer até seu cotidiano. Ou flutua livre nas nuvens da leveza ou caminha presa no peso do dia-a-dia. O peso não só é possível como é a razão da vida. E quando, naquele lampejo de profunda consciência que todos têm ao menos uma vez na vida, se vislumbra o vulto do vazio, é como o homem se enxerga tal como é. E lhe é quase imediata a vontade do perdão a todos os homens. Na obra “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, Saramago inverte a direção do clamor de Cristo; enquanto é crucificado, Jesus dirige-o aos homens: “Homens, perdoai-lhe[Deus], porque ele não sabe o que fez”. É por isso que Kundera sente uma forte nostalgia diante de uma imagem de Hitler, mesmo que diversos membros de sua família tenham sido mortos nos campos de concentração nazistas. Foi justamente nesse período cruel da história recente que viveu o idílio da infância. Num mundo e numa vida perdidos para sempre, o encanto da nostalgia é maior que o rancor. É como aquela canção sentimental e kitsch que ouvimos e que nos restitui, pela memória, uma vida perdida para sempre. Por isso permitimos essa canção na memória, quando não compramos o disco. É atroz o peso? É bela a leveza? Expõe isso tudo nos dois primeiros capítulos e somente a partir do 3º inicia sua estória. Esboça, assim, a ideia geral sobre as noções de peso e leveza que percorrerá todo o romance. No capítulo 2, depois de se perguntar se será atroz o peso e bela a leveza, Kundera exemplifica de forma clara a ideia do fardo pesado aqui, neste mundo mesmo, fundado sobre a inexistência do eterno retorno (mundo que por definição, segundo sua compreensão, deveria ser leve): “O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.” Em seguida conclui se perguntando o que escolher, o peso ou a leveza.
O que é atroz, nosso fardo, é ao mesmo tempo o que confere sentido e significado à nossas vidas; o que é leve, que nos liberta do fardo, é ao mesmo tempo o que nos subtrai a razão de viver, que nos joga no vazio. Kundera pergunta se é verdade que o peso é atroz e bela a leveza e em seguida relativiza essa verdade: sugere que nem tão atroz é o peso, porque confere à vida razão e sentido; e nem tão bela é a leveza, porque, libertando a vida do fardo, do peso, subtrai sua razão de ser. Xeque-mate. Toda a ideia exposta nos capítulos 1 e 2 é para ilustrar essa condição, presença constante em todo o livro. Podemos ver, então, que Kundera não reduz sua obra a uma afirmação sufocante e fixa de uma condição para a qual não há escolha entre a leveza e o peso. Se não há, é porque é preciso viver num mundo sem o eterno retorno, é preciso o acordo categórico com o ser, e então é preciso negar a leveza. Portanto fazemos exatamente o que você julga impossível: negamos essa condição com religiões e ideologias, essas duas culminâncias do peso kitsch. Kundera concebe seus personagens se movimentando justamente sob essa dinâmica geral. A contradição que aponta não é de Kundera, mas de nossas vidas representadas na obra de Kundera.
O peso e a leveza são, desde o início da estória, partes componentes de uma condição de estado intermitente. Kundera sabe que as pessoas percebem a vida através de seus próprios clichês, que vulgarizam a existência. O acordo categórico com o ser e o kitsch, muito mais que categorias políticas a que recorrem mundanos interesses, são formas e meios de se aceitar uma existência imperfeita, essencialmente contraditória. Minha afirmação de que Kundera dá à leveza a maior carga de enfrentamento, resistência, insubmissão, etc., foi da seguinte forma: “quando Kundera utiliza categorias como “leveza” para o que é insuportável e “peso” para o que é doloroso, dá à “leveza” a maior carga de enfrentamento, resistência, insubmissão, iconoclastia, tudo aquilo que, ilusória e aparentemente (porque só concebe, imperiosamente, esses atos humanos àquilo que se situa dentro dos limites físicos e do possível, sem entender que o homem, uma espécie de deus preso a um tubo digestivo, pode e deseja o impossível - “Unidade da alma e do corpo, ilusão lírica da era científica”) se pode atribuir ao “peso”, ao ponto de subverter os significados. Porque o ‘insuportável’, antes de sê-lo, passou por todas as espécies de acordo”. Está, portanto, dito de forma condicional, e assim estabelece a relação de causa e efeito: a metáfora de Kundera é que o peso é um fardo, mas a leveza é insustentável; o fardo é pesado, mas garante a vida; a leveza é doce, mas retira a razão da existência. Se o que dá sentido a vida é o peso, mas esta não resiste à leveza, eis o que afirmei: a maior carga de enfrentamento, resistência, insubmissão, iconoclastia, é o resistir e não se submeter ao acordo categórico com o ser, e aí reside o drama: viver é submeter-se a ele. Essa condição é o estado de leveza, que pode ser experimentada de forma mais ou menos regular quando se existe nesse estado. A ideia de peso sugere antes de tudo fardo (isso para mim é leveza, na verdade); a de leveza sugere, antes de tudo, ausência de fardo (que para mim é o peso). Mas Kundera, desde o título de sua obra, entende que há um preço a ser pago nas duas: o peso é o fardo das responsabilidades, mas dá a razão da existência; a leveza é a libertação das responsabilidades, mas deixa o vazio na existência, e a vida é então insustentável. No peso, o fim da vida, ou a anulação das razões da existência, não está contido em seu horizonte existencial; na leveza, exatamente o contrário: está contido em seu horizonte existencial o drama do ser ou não ser. Na leveza não sobrou razão de pé, sequer motivo para resistência ou não-resistência. O sentido das ideias de resistência, iconoclastia, etc., ganhou sob sua influência um valor que abala o valor e os fundamentos da existência. Quem tem acordo com o ser, o peso ou a leveza? O suicídio não está, absolutamente, acima de qualquer razão para viver, apenas reside nele uma dor que é insuportável, uma merda não-suportável, não mais possível sob qualquer tipo de acordo. Porque a questão não é mais como viver, mas ser ou não ser. Daí porque a leveza porta carga maior de resistência, tão maior que é insustentável, põe em risco o acordo categórico com o ser. Mas, de acordo com a ambiguidade dos conceitos, pode-se definir Tomas como um sujeito leve, por definição, que quer ser pesado, ou pesado que quer ser leve.
A despeito dos que não acreditam na existência de Deus, que entendem que a condição humana não partilha de qualquer Deus, a escolha entre crer ou não crer é possível. Por quê, se Deus não está na condição humana? De acordo com seu raciocínio (ou o que pretende ser de Kundera), de que a leveza em Kundera é uma condição que não permite escolha, não seria possível crer em Deus. Acontece que isso não tem a menor importância, idealizamos a vida e passamos a crer na representação que fazemos dela. Ora, não é justamente esse o papel do kitsch em Kundera, tornar possível o impossível pelo acordo? É dessa forma que se apresenta a razão filosófica do acordo categórico com o ser e seu correlato kitsch, quer dizer, meios pelos quais a história, ou a estória de Tomaz, Tereza, Sabina e Franz, acontece: meios absolutos, condicionais da existência, nunca como mero subterfúgio ou pretexto deliberado de uma classe. Essas apenas o utilizam de forma conveniente, porém ele jamais é eliminado, mas transformado. “O kitsch é um biombo que dissimula a morte”. Você afirma que “[...] há uma contradição entre definir a condição humana como leve e escolher, se é condição não há escolha. Desnecessário dizer que nada disso inviabiliza que se opte pelo engajamento e pela afirmação de valores, porque neste caso a escolha é possível”. A inexistência dessa contradição está apontada por mim no começo do texto. Mas nada disso inviabiliza que se opte pelo engajamento assim como nada disso inviabiliza que se creia em Deus, é a mesma razão e a mesma escolha. O acordo categórico com o ser terá “libertado” o homem para tudo, se assim o preferirmos.
A escolha em Kundera é entre a leveza e o peso, mas se você diz que “[...]nada disso inviabiliza que se opte pelo engajamento e pela afirmação de valores, porque neste caso a escolha é possível”, quer dizer que escolher o peso, apesar de uma suposta condição de leveza, é possível. Porque a escolha só pôde se dar entre a leveza e o peso.
Você comenta o episódio em que Tomas experimenta a doce leveza do ser e se indaga: “Doce leveza do ser? Mas não era insuportável? Por um lado Kundera contradiz sua própria definição, por outro mostra que a existência não é ontologicamente insuportável. A leveza do ser é insuportável, suportável ou doce”. Está dito, linhas acima, que Kundera não afirma uma existência ontologicamente insuportável, mas que a leveza, insuportável, é o estado ‘positivo’ da vida, estático, e que o impulso cego e violento para a vida é sua única possibilidade: o acordo categórico com o ser, e, assim, seu necessário kitsch. Repito: a leveza liberta para o nada, o peso confere substância sem libertar o ser do fardo da existência. Assim, a leveza é doce quando liberta, porém insustentável porque no mesmo instante nos subtrai a razão; o peso preenche o vazio, dá a razão, porém no mesmo instante nos aprisiona à vida e seu ofício. Imaginemos nós, sós numa sala a nos despir de tudo o que pudermos pensar que não é o eu: escola, trabalho, religião, Deus, filosofias, políticas. Quando terminarmos, o que sobrará? Nada, apenas o sentimento a mudar de estado e se perguntar: pra que? Estamos mais leves, sem dúvida, mas para que, se tudo o que nos aprisiona é o que nos dá sentido, esse nosso peso, nosso fardo? Terá Camus, quando afirmou que “[...]ficou evidente que ela [a vida] será vivida melhor se não tiver significado”, ultrapassado aquele estado-limítrofe para além do qual não há qualquer razão para viver? Porque essa ideia só terá identidade com a obra de Kundera se o que ele pretendeu dizer com “vivida melhor se não tiver significado” for liberdade. Sendo assim, a leveza seria suportável e desejável. A vida com razão ou sentido transcendental e a vida sem razão e sentido transcendental são igualmente absurdas, pois a pergunta "para quê?" não calaria diante de nenhuma condição. E se a Sísifo tivesse sido dado viver uma vida em que nela realizasse seu mais profundo significado, que a justificasse, mas tivesse sido feito mortal? E se fosse, na mesma condição, feito imortal? Nenhuma situação elimina a pergunta “para quê?” porque nenhuma situação vivida pode eliminar o sentimento do absurdo. Porque, a cada razão dada, continuará sendo perguntado “para quê?”. Sendo isso, a condição de mortais nos redime da tragédia, mas não há uma única opção sem angústia.

Só o Que Pode ser Belo é Aceitável

Não sei se trata-se de uma anedota ou não, vem do programa Sr. Brasil, de  Rolando Boldrin, essa curta história: um homem infeliz, vazio e cansado vai até o médico e relata seu drama existencial. O doutor o aconselha a fazer algumas viagens para outros países, mas ele diz que já fez isso e que conhece esses lugares. O doutor então o aconselha a tentar reencontrar a felicidade em coisas mais simples, e o sugere a visitar o circo da cidade e o palhaço que lá se apresenta. E ele diz ao médico: “doutor... eu sou aquele palhaço!” Seu drama é a insustentável leveza do ser.
Kundera fala de uma condição filosófica do ser que não passa pela percepção do homem. Se um acordo categórico com o ser é necessário, se é uma fatalidade, e produzirá o kitsch, a consciência de uma condição leve é uma quimera. Para uma vida essencialmente insuportável é necessário consciência sobre essa condição, mas o kitsch existe para mascarar essa consciência e assim permitir um acordo. Porque só o que pode ser belo é aceitável. Ainda assim, se não podemos afirmar que essa consciência determinaria necessariamente uma insuportabilidade da vida, ficamos mais ou menos certos de que ela tornaria tudo menos confortável, relativizando a afirmação de Camus.
O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados. Se é a beleza quem seduz para um acordo, e não a razão, não nos defendemos da queda com o peso, mas com o paraquedas do kitsch. Porque não há o peso sem o kitsch, tampouco o kitsch sem o peso. Chega-se à leveza porque se matou o kitsch, essa é o tiro que saiu pela culatra ou que acertou o alvo. Se é assim, o peso equivale à mentira inteligível que encobre uma verdade incompreensível, na verdade inaceitável. Sabina disse que “a beleza não é intencional. É isso mesmo, também se poderia dizer: a beleza por engano. Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é a último estágio da história da beleza”. Se enganando ou não, o que o homem procura, o que deseja, é o que lhe pode ser belo, e a tentação que tem para a queda é essa sua fraqueza diante da beleza. Beleza e desejo só existem em relação recíproca, mas aqui como dois ímãs que se atraem mas não se tocam, já que ‘tocar’, nesse caso, é o tocar numa verdade incompreensível, na verdade inaceitável. Em uma nota de orelha de O Livro do Riso e do Esquecimento, também de Kundera, é dito que “talvez o projeto estético de Milan Kundera tenha, desde o início, sido o da unificação daquilo que, por natureza, parece votado a uma existência divorciada (o grave e o frívolo, o real e o lúdico)”. E é isso a sua significação: Se o homem só pode desejar o que lhe possa ser belo, está fadado a fazer da vida seu idílio. O acordo categórico com o ser é, portanto, um sub-produto dessa fraqueza, essa tentação ancestral, que para se estabelecer cria, naturalmente, o kitsch, a máscara com que representa e aceita a si mesmo. Esse acordo é dois impulsos num só: da vida irracional e selvagem e do desejo da beleza e harmonia que a domestique.

O Peso e o Eterno Retorno

Kundera afirma, desde o título da obra, que a leveza é insustentável (ou insuportável). Ou seja, o vetor de uma vida sustentável é o peso, o valor e significação que se atribua a ela. Damos todos, à vida, um conjunto de valores através dos quais ela nos agradece retribuindo com noções de certeza, segurança e destemor acerca da existência. Assim enganamos a morte, o vazio e o medo, algumas das coisas indesejáveis da vida e possíveis caminhos a nos conduzir à insustentável leveza do ser. Mesmo que ninguém se convença por inteiro de suas próprias certezas, as religiões, essas formas supremas do acordo categórico com o ser, eliminam a morte, o vazio e o medo, afirmam que a vida ‘real’ virá depois da morte. Nos dão, assim, a eternidade, o eterno retorno como o pano de fundo da existência. A imensa massa humana, as multidões, concebe o mundo através das lentes da religião, do peso de toda a liturgia que a faz presente em suas vidas. “Na conclusão do meu primeiro texto acabei tropeçando na ambiguidade. A leveza é parte da condição humana, o peso só existiria se houvesse eterno retorno”, citação sua que comento. O pano de fundo comum a todas as religiões, esses grandes sistemas através dos quais justificamos a vida, é justamente a eternidade, uma ideia de eterno retorno. Se o homem está condenado a ser leve, não sabe disso. Peneira a existência com a religião e as ideologias e se livra do que a existência tem de essencialmente indesejável. Você diz que “A leveza é parte da condição humana, o peso só existiria se houvesse eterno retorno”... mas um pouco além de meu argumento exposto linhas acima, de que a leveza é a condição vaga da existência (da existência que precede à essência), ou o estado ‘positivo’ da vida, ponto de partida a partir do qual, em seu turbilhão espontâneo, essa vida desce para adquirir seu justo peso e significado, o peso existe porque a vida é concebida e vivida sob o manto do eterno retorno. Os marxistas também sabem que há uma verdade oculta sob os valores da sociedade humana e das religiões, no entanto a vida é vivida absolutamente alheia a essa verdade e, talvez, exatamente por isso. Essa contradição da condição humana é absolutamente viável. Os valores dos homens não surgem somente segundo o que possa ser a verdade, mas segundo a ideia que podem fazer da verdade. É por isso que a escolha é possível: porque a vida é inevitável.
Para além disso, a certa altura da vida e da maturidade a escolha livre e consciente é nitidamente possível. O sujeito chega a um estado tal de clareza de sua situação, de sua condição, que pensa: “bem, viver sem qualquer razão ou sentido é difícil e não tenho mais como me enganar quanto a isso...então preciso escolher: a leveza do vazio, que me livra do peso das obrigações mas exatamente por isso me subtrai a razão de ser, ou o peso das responsabilidades, que me dão razão mas também me aprisionam?” Aqui, a escolha é mais que possível. É sempre a partir do que ocorre com o homem que a reflexão existencial principia. Kundera qualifica como leveza aquele instante em que nossas vidas se desprendem de seus motivos e flutua no vazio, e a vida depende do peso. Ser pesado, portanto, é a condição particular com a qual balanceamos uma outra condição, universal: a leveza de um mundo fundado essencialmente na inexistência do eterno retorno. Coloque o peso num lado da balança, a leveza no outro. Qual desce e qual sobe? É assim que passamos a vida a fugir de nós mesmos. Assim vivem Tomaz, Teresa, Sabina, e mesmo Franz. Se pudermos designar a insustentável leveza do ser como o lugar, por excelência, da morte existencial, ela é o lugar onde a metafísica precede a física. No fundo, quem não experimentou o vazio tem pouca coisa relevante a dizer.

O Acordo Categórico Com o Ser
Só o que pode ser belo é aceitável
A partir da seguinte definição de Kundera, de que Por trás de todas as crenças européias, sejam religiosas ou políticas, está o primeiro capítulo do Gênese, a ensinar que o mundo foi criado como devia ser, que o ser humano é bom e que, portanto, deve procriar. Chamemos essa crença fundamental de acordo categórico com o ser, você afirma que “A esquerda anarquista e marxista não firma o acordo categórico com o ser. É neste ponto que começa a mistificação kunderiana e a nossa polêmica. Marxismo e anarquismo divergem sobre a questão do poder, mas convergem em pontos fundamentais: não crêem no Gênese, não acreditam que o mundo foi criado e não defendem que exista uma natureza humana (o ser humano não é nem bom nem mau).” Em seguida afirma não se tratar de uma crítica meramente ideológica porque parte das premissas do próprio Kundera.
Porém, como se não bastasse sabermos que Kundera foi um apaixonado militante de esquerda, e que não poderia elaborar qualquer mistificação que tivesse como condição fazer crer que marxistas e anarquistas acreditam no Gênese sem que ele mesmo caísse no ridículo, ele não chega ao termo de sua definição aí, pelo contrário, continua, logo à frente, com o seguinte: A origem do kitsch é o acordo categórico com o ser. Mas qual é o fundamento do ser? Deus? A humanidade? A luta? O amor? O homem? A mulher?
A esse respeito, existem várias opiniões, assim como existem várias espécies de kitsch: o kitsch católico, protestante, judeu, comunista, fascista, democrático, feminista, europeu, americano, nacional, internacional.
Apenas esse último parágrafo já esclarece, sem deixar dúvidas, que Kundera inclui marxistas e anarquistas em sua definição, sem falsificá-los, e que a presença oculta do Gênese em todas as crenças europeias, religiosas ou políticas, é apenas a particularidade do acordo europeu. Pois bem. Não será a existência o fato primordial, fundamental a partir do qual todos os outros adquirem sentido? A máxima existencialista afirma que a existência precede a essência. A pergunta que você deixa de fazer é justamente sobre o que fundamenta o ser. Para os defensores do Gênese certamente é Deus. Mas e o resto? Para um comunista, ou um anarquista, certamente é a humanidade, ou mesmo o amor e a luta. Mas apenas o fato de elegerem a humanidade como sua causa fundamental já explica que o essencial, no acordo categórico com o ser, não seja o Gênese. Simplesmente porque o Gênese é fenômeno secundário na ordem das coisas. O acordo categórico com o ser, portanto, precede o Gênese, precede o comunismo, o anarquismo e o que quer que tenha saído da cabeça humana e de sua práxis. Estes surgem um átmo de segundo depois de firmado o acordo categórico com o ser, são suas formas, segundo cada um desses sistemas conceba o mundo, a humanidade ou a vida. Se são sistemas que se excluem mutuamente, possuem acordo, acima de tudo e de todos, numa verdade: que concebam o ser. Se o kitsch é a justa consequência desse acordo, como afirmar que marxismo e anarquismo, ou qualquer outro sistema, não o produzam? Se há o kitsch na esquerda, como afinal concordamos, há o acordo categórico com o ser. Também não busco essa resposta fora da obra de Kundera, parto dela mesma. O acordo categórico com o ser se posiciona, em relação a qualquer desses sistemas, como causa, não como efeito. Antes de saber “como” é preciso definir “o que”. Para se discutir o ser é preciso antes aceitá-lo. Portanto, assinemos esse acordo; quanto à forma como organizaremos a vida, a História definirá. Aí seremos católicos, protestantes, judeus, comunistas, fascistas, democráticos, feministas, europeus, americanos, nacionais, internacionais. Ora, não é por acaso que nenhum desses sistemas, absolutamente, produza um discurso ou narrativa que condene o ser de forma absoluta. Todos eles condenam o ser segundo seu antípoda. Ou seja, nunca condenam o ser, mas determinada concepção desse ser. Se acaso este ser apresente algum obstáculo, ou merda, como condição que se interponha entre nós e nós mesmos, racionalizamos uma cosmogonia que exclui de nosso campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável. Portanto, o Gênese não é a fonte do acordo categórico com o ser, é exatamente o contrário: o Gênese bebe na fonte profunda do acordo categórico com o ser. O marxismo ou o anarquismo não só querem promover o ser como querem promover o verdadeiro ser, uma reconciliação do ser consigo, então disperso e alienado de si mesmo. Curiosamente, o mesmo ideal gnóstico. Quando Kundera fala do kitsch como ideal estético, ou consequência do acordo categórico com o ser, portanto, está se referindo a um tipo de, digamos assim, merda condicional. Algo que o homem traga em sua condição, ou que produza como efeito colateral de sua práxis, ou que não seja produto exclusivo de seu ser social. Se não é tão fácil falar de qualquer condição perene pregada ao homem, basta pensarmos em todas as possibilidades humanas e seus respectivos limites. Pragmaticamente e externamente, imaginemos os princípios. O que são os princípios, senão aquele acordo categórico entre os homens, aquele conjunto de regras inalteráveis e não circunstanciais das quais depende o homem para estabilizar seu espírito? Existem na esquerda, nas religiões e em todo canto, cada qual à sua maneira e segundo suas fontes, segundo o seu acordo.
O fundamento do acordo categórico com o ser é uma ampla e genérica, direta e indireta afirmação do ser. Se chama-se acordo é porque essa afirmação tem uma forma, ou seja, descreve esse mesmo ser, e quanto a isso, sabemos, a história nos deu inúmeras definições: quando católicos, protestantes e judeus afirmam Deus, afirmam o ser; quando comunistas afirmam a humanidade, afirmam o ser; quando o fascista afirma sua ordem totalitária e violenta, afirma o ser; quando o ‘democrático’ afirma a liberdade, afirma o ser; quando a feminista afirma a emancipação e a independência feminina (e também quando sujeita sua compreensão da vida e do mundo ao gênero), afirma o ser; quando o europeu afirma seu continente, afirma o ser; quando o americano afirma o ‘american way of life’, afirma o ser; quando o ‘nacional’ e ‘internacional’ afirmam suas identidades e fronteiras, afirmam o ser. Num texto anterior eu disse o seguinte, me referindo a uma outra colocação sua: “das duas questões que coloca para entender o fenômeno do acordo categórico com o ser (o mundo não foi criado como deveria ser?; o homem não é bom e deve procriar?), creio que a esquerda, ainda que possa achar que o ser humano não é essencialmente bom (mas que pode redimi-lo), concorde em princípio com a segunda, e assim se insinua um novo acordo. Por essa razão eu sugiro que há, de qualquer maneira, outra espécie de acordo categórico com o ser.” Pois bem. Como se trata, religião e ideologias, de formas distintas para um mínimo acordo comum com o ser, vejamos o que podem ter em comum o Gênese, forma teológica de um acordo, com a ideologia revolucionária, forma secular de outro acordo.

Licença Para Uma Pequena Heresia Comparativa

Esse ponto em comum que tento apontar reside no acordo categórico com o ser, não na forma desse acordo, porque ambas se recusam. Se a heresia a que me refiro há de estranhar aos dois lados: o do Gênese, que abomina qualquer ligação sagrada com coisas do mundo dos homens; e o da ideologia secular, que não aceita, a priori, qualquer relação que se estabeleça com o que seja sagrado, talvez haja nisso um terceiro sinal da comparação que ora tento, de forma simples e sucinta, mostrar. Lembraremos que o inimigo de Sabina é o kitsch, não é o comunismo.
O mundo foi criado como deveria ser? O Gênese afirma que sim; os revolucionários afirmam que não e propõem uma nova criação, um novo ethos, um outro homem. Àquele, porém, que contestar essa nova criação, ou esse novo acordo, não importa os seus motivos, será respondido que o mundo foi então criado como deveria ser: o ‘devir’ histórico. O homem é bom e deve procriar? O Gênese afirma que sim. Vejamos agora a ética revolucionária sobre esses dois pontos. Primeiro o ato mais fácil de identificação de semelhança, que é o verbo ‘procriar’: quanto a esse creio que não haja desacordo, já que, se há uma nova criação, é para que o homem continue sua história, liberto agora de seus grilhões ancestrais. Enfim, que procrie livre. Quanto a uma ontologia da bondade e da maldade, há divergências mais sérias. O Gênese afirma categoricamente que o homem é bom; os revolucionários afirmam que ele não é essencialmente bom e nem mau, que não há uma ontologia aqui e que isso faz parte de seu ser social, sua práxis. Quanto a isso não há confusões, ambos se excluem. Mas a intersecção que aponto reside na metafísica de ambos, para onde aponta seu desejo em relação ao homem. Os grilhões que aprisionam o homem são os mesmos que determinam o seu ser. Libertar o homem é também transformar seu ser. A luta revolucionária que libertará o homem aponta sua artilharia retórica na denúncia de valores/práticas como exploração, escravidão, miséria, usura, roubo, e a toda moral e prática deplorável do sistema capitalista, molde do caráter humano. Quando faz isso, defende justamente o que o homem ainda não pôde realizar, que é como, dos seus olhos de homem particular do passado, desejaria enxergar o homem universal de amanhã: bom, tanto quanto a supressão da exploração, da escravidão, da miséria, da usura, do roubo e da moral hipócrita que o molda possa assim defini-lo: que não seja o lobo do homem. O Gênese afirma que o homem é bom; a ética revolucionária, que ele poderá ser bom, ou que, agora órfão de um mundo doente, não será mau como é. Entre afirmar que o homem é essencialmente bom e que ele não é bom e nem mau, reside o mesmo desejo. A revolta revolucionária é contra um homem que explora o outro, que escraviza, que rouba, que mata para isso. Ao afirmar que o homem não é bom e nem mau, essa ética deseja dizer que ele não é essencialmente mau e que pode, por isso, ser salvo. Ao mesmo tempo em que exclui do homem um caráter essencialmente bom, exclui igualmente um caráter essencialmente mau, porque só o que pode ser belo é aceitável. Esse fato retira de seu alcance a condenação do homem: nasce um novo acordo. Coincidentemente, podemos associar características como o desprezo pelos poderosos, a coragem, a nobreza de sentimentos, a sensibilidade e a capacidade de se sacrificar pela justiça igualmente a Cristo e ao romantismo da ética revolucionária, e não há nisso nada absurdo.
Associando kitsch e acordo categórico com o ser, isso lembra Sabina quando, dez anos mais tarde, já na América, sai a passear com um senador americano amigo de seus amigos e algumas crianças. Nesse passeio, o senador para o carro e fica observando as crianças correndo num imenso gramado próximo a um estádio. Em certo momento, com os braços abertos num gesto que abrangia o estádio, o gramado e as crianças, diz a Sabina: olhe para eles! É isso que eu chamo de felicidade. Sabina imagina então o mesmo senador numa praça de praga. Em seu rosto havia exatamente o mesmo sorriso que os estadistas comunistas, do alto de seus palanques, dirigiam aos cidadãos igualmente sorridentes, que desfilavam a seus pés.
Kundera diz ainda que nas épocas de maior crueldade os filmes que inundavam os países comunistas eram impregnados de uma profunda ingenuidade. O mais grave conflito presente nesses filmes era o desentendimento amoroso do casal, e no final um caía nos braços do outro. Idêntico ao ideal propagado nos filmes de Hollywood em boa parte do século XX e às novelas mexicanas que passam por aqui. A explicação convencional, segundo Kundera, era que esses filmes descreviam o ideal comunista enquanto a realidade era bem mais sombria. À Sabina, porém, a ideia de que o universo kitsch soviético podia se tornar realidade causava calafrios. No mundo comunista real, segundo ela, era possível viver. No mundo do ideal comunista realizado, naquele mundo de cretinos sorridentes com os quais ela não poderia ter o menor diálogo, teria morrido de horror em uma semana.
O que é curioso aqui é notar que o kitsch americano e o kitsch soviético eram idênticos. No entanto, o acordo categórico americano tinha por base o Gênese, o soviético uma ética secular. A natureza siamesa desse apelo kitsch às massas, cujo acordo têm matrizes distintas, me faz lembrar do que ecoa tanto em nosso debate, que “a fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch”.
A certa altura, numa exposição dos quadros de Sabina na Alemanha, organizada por um movimento político, Sabina, folheando o catálogo da exposição, observou que na frente de seu retrato haviam desenhado fios de arame farpado e sua biografia parecia com a hagiografia de santos e mártires. Protestou, sem que a entendessem, quando leu a última frase, “com seus quadros, ela luta pela felicidade”. Perguntaram se então não era verdade que o comunismo perseguia a arte moderna, ao que Sabina respondeu que seu inimigo não era o comunismo, mas o Kitsch. Sabina não descansa no que ela possa pensar que não é kitsch, prefere apontar suas armas onde ele estiver. Mais certo que procurar onde ele não está é encará-lo onde está: na exposição, no sorriso do senador americano e do estadista comunista, nos sovietes, no ideal americano ou no soviético, não importa.
Se a pergunta “liberdade, mas liberdade para que?” está presente em Kundera, podemos pensar que “quanto mais liberdade, mais angústia?” Poderemos refletir que o presente existencial à humanidade dada pela libertação das forças produtivas será uma liberdade jamais vivida, mas também uma angústia jamais vivida? Poderemos então concluir que essa é uma condição? Ou esse ideal de liberdade é como o é para os gnósticos num paraíso edênico e tal qual Dostoievsky em seu “Sonho de Um Homem Ridículo”? Não falo aqui como se fala de uma realidade pensada, mas como se fala de uma realidade concreta. O mito é o nada que é tudo, disse Fernando Pessoa. É possível viver sem o kitsch, esse mito barato, mundano e cotidiano? Ou o eliminamos e temos a liberdade sem saber o que fazer com ela, entregues à insustentável leveza do ser?
Você tem acordo quanto a esquerda também ter produzido o kitsch, inclusive os sovietes, como reproduzido em duas afirmações anteriores suas: “O kitsch de esquerda enxerga o mundo em termos de bem e mal, a traição de uns poucos freia a revolução”; “Pode haver kitsch nos sovietes e nas revoluções? Claro, mas encerrar a análise nesse ponto é inaceitável, é uma postura ideológica que tenta tapar o essencial com o secundário”. Em seu último texto, porém, você afirma que “Kundera diz que o kitsch é o ideal estético do acordo categórico com o ser, afirmação com a qual concordamos”. Mas então, se há acordo entre nós que a esquerda foi outra fonte para o kitsch no século XX, de onde nasceu esse kitsch senão de sua fonte, o acordo categórico com o ser? Se o kitsch é o ideal estético do acordo categórico com o ser, não pode ser secundário, está em primeiro plano, na ordem do dia. Religião e ideologias (aqui conjunto de princípios definidores do mundo e regra moral) concordam necessariamente num ponto: reclamam sua autoridade sobre o indivíduo. Porque a ideologia transpõe os fundamentos de uma ética religiosa para sua esfera secular. Se cada tempo histórico produz sua narrativa, sua cosmogonia, esse signo, esse símbolo kitsch que é sua narrativa, é resultante da afirmação do ser, do acordo categórico com o ser e da negação do ‘não-ser’.
Narração exemplar de Kundera onde se vê não o Gênese, mas o acordo categórico com o ser como a fonte primal de ideologias, e a ética religiosa secularizada: “[Sabina] Tinha assistido aos desfiles de 1º de Maio numa época em que as pessoas ainda estavam entusiasmadas, ou ainda faziam força para dar essa impressão. As mulheres vestiam blusas vermelhas, brancas ou azuis, e, vistas das varandas e das janelas, formavam os mais diversos motivos: estrelas com cinco pontas, corações, letras. Entre os diferentes setores do desfile, avançavam pequenas orquestras que davam o ritmo da marcha. Quando o cortejo passava diante da tribuna oficial, mesmo as fisionomias mais taciturnas se abriam num sorriso, como se quisessem provar que estavam alegres como deviam, ou, mais exatamente, que estavam de acordo com o que delas se esperava. Não se tratava de um simples acordo político com o comunismo, mas sim de um acordo com o ser enquanto tal. A festa do 1º de Maio abastecia-se na fonte profunda do acordo categórico com o ser. A palavra de ordem tácita e não escrita do desfile não era “Viva o comunismo!”, mas sim “Viva a vida!”. A força e a astúcia da política comunista foi ter se apossado dessa palavra de ordem. Era precisamente essa estúpida tautologia (“Viva a vida!”) que levava ao desfile comunista pessoas completamente indiferentes às ideias comunistas.”      
A farsa acima descrita demonstra e desmonta melhor do que eu poderia o mecanismo do acordo categórico com o ser. É um acordo com a vida, com o ser enquanto tal, e isso não é exclusividade do Gênese porque o Gênese, como sabemos, é uma criação humana, ou melhor, um ideal estético humano. Quero dizer: uma forma humana para um acordo com o ser enquanto tal. Todo grande movimento político ou religioso de massas tem seu apelo sempre à vida, não poderia ser de outra forma. Não significa que esse apelo seja necessariamente falso, o apelo é mesmo à vida, mas sim que é o fundamento do apelo de todas as ideologias e religiões, e o é porque suas fontes são a única: o acordo categórico com o ser, que limpa o indesejável com o kitsch. É isso o que as épocas reacionárias e as épocas em transformação têm em comum, cada uma com o kitsch que lhe cabe: que lhe cubra mais ou que lhe cubra menos as suas sujeiras.
Junto ao parágrafo acima, Kundera tece ainda comentários para ilustrar de que forma os teólogos ocidentais construíam suas teorias de modo a excluir, de forma absoluta, a merda da condição humana. E afirma que a objeção à merda não é de ordem moral, mas metafísica. Afinal de contas, não se pode considerar que a merda seja imoral! Defecar é dar uma prova cotidiana do caráter inaceitável da criação. Esse caráter metafísico a que se refere Kundera pode ter contato com uma certa crítica de Max Stirner aos hegelianos de esquerda, quando aquele afirma que os iluministas modernos (me parece que inclui Marx e os hegelianos nessa definição) não fizeram mais que “matar Deus” fora de nós, ou seja, “eliminaram o além que existe fora de nós, mas conservando, como ‘ateístas devotos’ que eram, os fundamentos da ética religiosa, o ‘além dentro de nós’, meramente transpondo esses fundamentos para uma forma secularizada”. Antropocêntricos, destituímos Deus e elegemos o homem em seu lugar, num corporativismo de espécie. É bem parecida com a crítica que o próprio Marx fez a Feuerbach e sua concepção estática e mecanicista da religião, em suas famosas “Teses Sobre Feuerbach”. Sabe-se, por Engels inclusive, da influência de Feuerbach no pensamento de Marx. A fraqueza que Marx aponta em Feuerbach é a mesma que se pode ver, sob a perspectiva de Stirner, na ética humanista revolucionária.
Se a esquerda transpôs para a Terra e secularizou a epopeia da redenção do homem, não pôde eliminar os fundamentos de uma ética religiosa, o “além dentro de nós”. Não eliminou o acordo categórico com o ser porque para isso teria de renunciar ao humanismo fundamental de suas teorias. Isso ajudaria a explicar a reação desmedida de sectários e dogmáticos ortodoxos diante de qualquer crítica a Marx ou a determinados fundamentos de princípios elementares dos quais partem. É a mesma reação de fiéis quando Deus é contestado, assim como o sorriso do senador americano diante das crianças correndo num gramado é o mesmo de um político comunista num palanque na Boêmia. Por quê? Porque todos firmam um acordo, e todo acordo produz seu kitsch.
O acordo categórico com o ser é, portanto, um princípio geral no qual se nutrem religiões, filosofias e ideologias. Não existe exclusivamente para o Gênese ou para religiões. Partindo das premissas de Kundera, sua afirmação de que “Ou Kundera não inclui marxismo e anarquismo na definição, ou falsifica princípios elementares de ambos. Como me parece que a segunda opção é a correta, afirmei que ele despolitiza, ou seja, é ideológico e reforça a falsa consciência” não está correta. Kundera inclui religiões e ideologias em sua definição, pois os princípios elementares de ambos estão de acordo com o ser. Inclusive porque dizer que ele é ideológico e reforça a falsa consciência é o que cada princípio oposto dirá do outro, ou seja, tem validade geral e não nos leva, portanto, a lugar algum. Kundera, a meu ver, contribui para o debate e amplia a problematização. Você afirma ainda que “o acordo categórico com o ser se ergue sobre três pilares: a crença no Gênese, na criação do mundo (criacionismo) e na natureza humana (o ser humano é bom)”, mas penso ter demonstrado esse equívoco de acreditar que o Gênese é a fonte do acordo categórico com o ser, quando é precisamente o contrário. Dessa perspectiva, afirmar que “por isso afirmei que o acordo categórico com o ser é o arranjo estético-filosófico das épocas reacionárias, acrescento dizendo que é o arranjo estético-filosófico do pensamento reacionário” é profundamente ideológico. Pois se esse acordo é o arranjo estético-filosófico das épocas reacionárias e o arranjo estético-filosófico do pensamento reacionário, o que se poderá dizer de todas as experiências das esquerdas e de todo o pensamento da esquerda, que tem sua ética humanista fundamentada, como dito, num acordo categórico com o ser? Seria mais sensato, a meu ver, se você afirmasse que à direita cai como uma luva a noção do acordo categórico com o ser, mas jamais dizer que uma bebe em sua fonte e outra não. Não foi isso o que a história, o campo da existência humana, nos mostrou até agora. Por isso, uma vez mais: Kundera não fabrica dogmas, desarma-os. O problema surge quando desarmar dogmas da esquerda significa criar dogmas para a direita.
“Ao pé da letra e dos princípios, não há kitsch nem no marxismo e nem no anarquismo, mas sabemos que valores milenares não morrem facilmente, os três pilares do acordo categórico inclusive, mas por esse critério a esquerda (marxistas e anarquistas) é tão vulnerável quanto o homem do subsolo, ou até menos, já que se expõe a um processo de crítica coletiva, o que não ocorre nas profundezas do subsolo.” Quanto a simplesmente não existir o kitsch no marxismo ou no anarquismo, para isso seria necessário que estes dois sistemas fossem absolutamente separados das massas e organizações, que as desconsiderassem de suas teorias, e para isso teríamos de operar um milagre; se você se refere, ainda, a uma espécie de ‘pureza’ teórica, tanto pior porque nada mais kitsch. O Gênese não é a fonte do acordo categórico com o ser, mas exatamente o contrário. Quanto ao homem do subsolo, é tão vulnerável quanto a esquerda, inclusive porque partilha com esta o mesmo mundo e a mesma vida. Mas como este não faz da humanidade o seu novo fundamento, tem chance menor de, nesse teatro, cumprir o mesmo papel. Pensar que a esquerda é menos vulnerável porque se expõe a um processo de crítica coletiva...bem, não sei a que coletivo se refere, o que sei é que a esquerda, histórica e ininterruptamente, se expõe a um processo de crítica coletiva da esquerda, e não do que vem de fora dela. Só pode observar a si mesmo quem está por fora, quem sai de si mesmo. O máximo a que tem chegado a esquerda, ou a que normalmente chega, é, me permita dizer, à crítica coletiva de paróquia, de compadres. Está tão desacostumada ao convívio quanto o homem do subsolo. Se o verdadeiro adversário do kitsch é o homem que interroga, se ele é o portador da pergunta que é como uma faca que rasga o pano de fundo do cenário para que se veja o que está por detrás, a esquerda só o poderia encontrar do lado de fora, depois de rasgar o seu próprio pano de fundo. Discordância, ceticismo e ironia a esquerda pratica, mas não aceita que se pratique com ela, pois quem assim o faz é a direita. Ela jamais poderia rir de si mesma, jamais poderia reconhecer seu aspecto kitsch, porque sua causa é séria, e o reino do kitsch é sério. Esse adversário do kitsch não é, portanto, um natural convidado à roda da esquerda. E nem da direita, naturalmente. Sabe que não se vai à igreja para negar deuses, mas para louvá-los. Negar pode ser possível, mas do lado de fora. Ninguém escapa dessa roda-viva, amigo, não se engane. Nem o homem do subsolo, que tende a não ver detalhes que só veria por dentro, tampouco a esquerda, que tende a não ver detalhes que só veria por fora. Se cada um precisa abandonar seu mundo de ilusões, ao homem do subsolo resta o derradeiro abandono, mas a esquerda ainda terá de sair. Quanto a isso, e somente quanto a isso, penso que o homem do subsolo haverá de ter mais facilidade. É como Sabina, essa mulher do subsolo. É uma questão de condição, não escapamos. Cada um de nós enxerga o mundo com sua lente: católicos, protestantes, judeus, comunistas, fascistas, democráticos, feministas, europeus, americanos, nacionais, internacionais.
O artigo nº 5 de seu texto parte todo do mesmo princípio: enxerga o Gênese como fonte do acordo categórico com o ser, e justamente daí parte todo o seu equívoco, inclusive o de pensar que Kundera prega o Gênese na condição humana. Esclareço apenas que a citação “nenhum de nós é sobre-humano a ponto de poder escapar completamente ao kitsch. Por maior que seja o nosso desprezo por ele, o kitsch faz parte da condição humana” não é minha, mas sim do próprio Kundera. Me parece que você pensou ser minha, então esclareço. E novamente: o kitsch não representa barreira para o crescimento dos partidos e organizações de esquerda, e sim condição sine qua non para esse crescimento.


Primeiras Considerações

Concordo que a expressão ‘estado soviético’ possa ser entendida também como uma contradição conceitual nos termos, e essa contradição não foi cometida por mim, mas pela história. Quem quisesse, no limiar do século XX, imaginar o fim do estado e tivesse mirado nos sovietes, teria fracassado juntamente com estes. Para além disso, não precisamos, ao fazer uso de tal expressão, buscar sempre seu sentido etimológico, seria pedantismo. Usamos tal expressão porque assim a história registrou. Inclusive o próprio Lenin.
Você concorda com Barthes sobre todo discurso ser portador de um projeto de poder, assim como eu mesmo o fiz. E para resolver esse “problema”, assim como todos os demais, você reivindica a ‘democracia operária’, achando que do livre e leal embate de ideias, nas assembleias (essas formas democráticas de burocracia), brotará necessariamente a forma mais justa. Essa concepção mecânica da dinâmica da vida me lembra muito aquele personagem de Voltaire, o Dr. Pangloss, e seu mantra: “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”.
Você nega a relativização, mas tudo aquilo que tem seu tempo, lugar e circunstância, ou seja, tudo na vida, é relativo a esse tempo, lugar e circunstância. Será a relatividade da dialética ou a dialética da relatividade?
A estrutura econômica determina as ideias. E o que determina a estrutura econômica, senão uma condição anterior a ela segundo a qual as coisas não poderiam ter sido de outra forma? Essa pergunta você não responde por que não a faz, entendo. Assim, a estrutura econômica foi criada como poderia ser, como deveria ser. De determinante que é, também foi determinada. É por essa razão que você afirma que a revolução precisa desfazer o acordo, mas não diz que fará outro. A própria ideia de revolução, palavra de origem latina, revolutio, ou seja, girar, dar voltas, trazer à tona o que está por baixo, é a ideia de uma nova criação, o “recriar”, um novo acordo, um novo pacto com o homem. Acho que o equívoco de pensar que Kundera definiu o Gênese como a fonte do acordo categórico com o ser é que o leva a excluir a revolução, o marxismo e o anarquismo de qualquer acordo com o ser, e, consequentemente, a eximi-los de responsabilidade absoluta , ao pé da letra e dos princípios, quanto ao kitsch. Eu já disse que para mim isso é uma postura equivocada e perigosa, mas repito.

Liberdade

Sim, falamos sobre a liberdade em sentidos diferentes. Mas creio que não se pode falar qual liberdade é menos possível, se a política ou a de consciência. Inclusive porque estão simbioticamente relacionadas, não se pode ter liberdade de consciência sem liberdade política ou liberdade política sem liberdade de consciência. Se há limite no conceito de ‘liberdade’, é necessário que o haja também na linguagem, porém o kitsch não permite. A realidade nunca estará estampada na bandeira, essa linguagem para as multidões. Esquece-se que a liberdade política é somente a saída possível, passa-se a entendê-la como o grau ideal e absoluto da liberdade, quando ela é antes expressão do limite dessa liberdade, forma de um equilíbrio social necessário. Isso não significa que não haja liberdade, mas que há um descompasso entre a linguagem e as possibilidades reais. Se a liberdade política é que permite a existência do homem que interroga, como você afirma, quem detém o poder político? Entenda o que estou dizendo, a liberdade, em si, é uma abstração. A ‘liberdade política’, predicado do poder, está ligada ao ‘poder político’, sujeito do poder. Se a liberdade política é que permite a existência do homem que interroga, mas ela em si é uma abstração (porque ela não é alguém, não é sujeito), quem permite é quem detém o poder: o Partido, a Assembleia ou os conselhos: o poder político. Se esse poder permite, liberdade deixa de ser conceito para ser objeto. Porque diante de um poder que me permite, minha liberdade não é mais minha (como não terá sido antes). Foi tomada junto com o poder que foi tomado. É, nesse sentido, permissão. Se eu disse que você utilizou o termo ‘liberdade’ como permissão, autorização, é porque a liberdade política, que você reivindica, não pode, não tem meios para não se realizar assim. A noção de ‘liberdade política’ corresponde sempre à expressão contínua do que grita por liberdade, não é nunca uma acabada realização. É uma limitação estrutural, é simples. Quem a detém é dono da concessão, e se o partido, as assembleias e os conselhos são os próprios trabalhadores, os sovietes também o eram e deu no que deu. Assim, é uma liberdade dada em teoria mas retirada na prática, e, assim, um engodo. Por isso, sobre essa liberdade, eu disse: “O que ela diz publicamente: "você pode pensar o que quiser como quiser". O que ela diz em particular: "desde que esse pensamento não relativize ou enfraqueça minha razão". Se a liberdade é antes de tudo política, de imprensa e de opinião, o desmentido fica fácil. A liberdade de imprensa e de opinião apenas será dada na exata medida em que essa liberdade estiver de acordo. Acordo com a ordem, acordo com o ser e com o poder político. Não precisa me explicar que a revolução que tomou o poder não pode permitir sequer qualquer espaço para o burguês, seria redundante. Eu sei disso, não pode. Mas como esse novo poder só reconhece o discurso antagônico na boca do inimigo, eu não preciso ser burguês ou alguém que defenda este para ter minha liberdade roubada. Para isso basta que meu discurso sirva indiretamente a este. É o bastante para o poder político apontar seu dedo acusador em minha direção e pôr sua polícia a vigiar minha consciência e minha ‘liberdade política’. Quem não é de direita mas tem pensamentos que favorecem a direita, é, no mínimo, “inimigo funcional da esquerda”. Lembre que a definição do que é burguês, do que serve a seu interesse, e de tudo que não seja “operário”, nessa imutável configuração do poder, está sempre nas mão de quem julga. A própria ideia de “funcional da direita” demonstra, para mim, o quanto de totalitarismo há por trás do véu da liberdade. Não adianta eu dizer que não sou inimigo se sou, no mínimo, funcional da direita. À direita e aos ‘funcionais da direita’, sabemos que o destino é um gulag qualquer, indistintamente. Ou há acordo ou meu pensamento me torna inimigo. Ora, porque eu não posso pensar o que dirão estar contra o povo, mais precisamente contra a média de sua moral e cultura, não a seus interesses, e eu sei muito bem como se comporta o rebanho, a turba, as multidões e as maiorias quando são contrariados. É esse o calcanhar de Aquiles da liberdade significada por um lado e por outro, como só poderia ser. A liberdade, assim, ostenta uma bandeira distinta de seu real significado. Como diz a sabedoria zen, “o dedo que aponta a lua não é a lua”. Não, não me diga que se não for assim não tem jeito, eu sei, acredite. Estou cansado de saber. O que restará a Sabina, sob essa liberdade, se não trair a ordem? Foi por isso que afirmei que discutir a liberdade nesses termos não seria mesmo fácil. Porque a história não a permitirá sem injustiça. Por isso não estou dizendo que a esquerda seja má ou coisa parecida, trata-se de algo além de sua vontade. Da mesma forma que ela é ‘funcional da direita’ mesmo sem querer ser. Portar o estandarte da liberdade publicamente e negá-la particularmente é apenas a fração pública da contradição de todos nós e da condição nossa de cada dia. Você mesmo diz, sobre o homem do subsolo: “São escolhas e, definitivamente, uma não é moral e eticamente superior à outra, pelo menos enquanto não começa a agir, neste ponto as coisas podem mudar”. Nesse ponto, o que mudaria: a moral e a ética do homem do subsolo (que não deseja contestar o poder para além daquilo que ele tem de contestável) passaria metafisicamente à condição de objeto moral e eticamente inferior na justa medida em que a moral e a ética que julga passaria à condição de objeto moral e eticamente superior. Quer dizer, a moral do homem do subsolo sempre foi julgada inferior, ainda que não agisse. Sabina não poderia, absolutamente, ser inimiga do kitsch sob tais circunstâncias. Ela não é inimiga do comunismo, e sim do kitsch, mas que chance teria ela de sê-lo sob uma estrutura limitada por natureza e que necessita, por isso mesmo, do kitsch? Essa confissão, apenas ela, demonstra melhor que meus argumentos o quanto a ideia de ‘liberdade’ carece de legitimidade nas bandeiras à esquerda e à direita. São esses os termos do acordo possível, mas que o homem do subsolo não fez. Ele sabe, então, que não se trata de confundir discordância com tirania (inclusive porque essa confusão já é atributo de um poder que não pode conceber a liberdade para quem o contesta em seus fundamentos, seja quem for e qual razão tiver), mas de uma fatalidade maior, da qual nem ele, nem os novos donos do poder, podem escapar. Mas ele não tem escolha, resigne-se e recolha-se à sua insignificância. “A democracia operária faz sentido há muito tempo”, ouvirá, antes do degredo. Ainda lembrará que “ninguém ocupa o trono das verdades” e gritará uma vez mais que o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que interroga. A pergunta é como uma faca que rasga o pano de fundo do cenário para que se veja o que está por detrás. E talvez, como Sabina, retomará seu caminho de traições e, de vez em quando, em suas profundezas, soará na insustentável leveza do ser uma ridícula cantiga sentimental falando de duas janelas iluminadas, atrás das quais vive uma família feliz. Essa canção a comove, mas ela não leva essa emoção a sério. Sabe que a canção não passa de uma bela mentira. No momento em que o kitsch é reconhecido como mentira, entra para o contexto do não-kitsch. Perde seu poder autoritário e, mesmo comovente, torna-se igual a qualquer outra fraqueza humana.

Ainda as Considerações

Não considerei meu procedimento autoritário e perigoso porque o expus publicamente para sujeitá-lo, inclusive, à desconstrução (ou seja, ao que ele não é e como e por que não é e não acontece), e creio que acima dei alguma explicação.
Você afirma que “A liberdade de consciência pode e deve ser total, mas seu portador, o indivíduo, se quiser convencer os demais precisará de fóruns e espaços para isso, fortalecer estes é fortalecer a democracia operária”. Da simples exposição dessa ideia pode-se concluir que você, tão certo dela, concebe apenas a discordância no “como fazer”, não mais em “o quê fazer”. Parte da ideia de que a humanidade já está de acordo com “o que”, portanto só precisará discutir o “como”. O que você não consegue entender é que discutir o acordo categórico com o ser não é discutir “como”, mas “o quê”.
E para uma discussão dessa natureza a democracia operária é mais uma instância burocrática. Natural, é uma ferramenta possível do acordo categórico com o ser, como pode conceber que se discuta a natureza das coisas? Digo isso apenas para esclarecer o mal entendido gerado sempre que se fala em nome da ‘liberdade’, e essa minha crítica soará ingênua a quem pensa que nossos limites não precisam ser apontados e, ainda pior, que está fora de toda conjectura. Se é considerado normal quem aceita e se adapta aos padrões e valores comumente recebidos, quando alguém recorrer aos fóruns e espaços específicos para expor uma queixa que ligue determinados efeitos nefastos ou trágicos ao tipo ou forma de poder que se exerce (ou seja, sempre que apontar um problema como parte da estrutura desse poder), será imediatamente entendido como elemento desestabilizador da ordem e inimigo, já que se comporta como quem não aceita e não se adapta aos padrões e valores recebidos. É quando os valores se alternam e o rebelde está obrigado a cumprir agora, por motivo de força maior, o constrangedor papel de ‘conservador’. De outro modo o poder teria de renunciar a si mesmo ao acatar denúncia de tal natureza. “O homem político que luta pelo direito de expressão do homem que interroga é uma possibilidade”, concordo, mas acho que essa luta do homem político tem o seu limite, e não é por outra coisa que não tenhamos dito até agora: é quando o homem que interroga se vira para o homem político responsável por sua liberdade. Esse pecado é capital sob tal circunstância, mas como a ideia de ‘liberdade’ é um conceito humano e só faz sentido para e em relação ao homem, só pode emanar de um lugar: da própria condição humana. Os partidos, movimentos e organizações não interrogam a si no que são. Nossa discussão era mais filosófica do que imagina, amigo. E muito menos pragmática. Como a obra de Kundera. A democracia precisa deixar de ser entendida como a panaceia de todos os males, como se os dramas humanos decorressem todos da ausência dela. Se ela é boa para o tédio deveria ser vendida em cápsulas.
Sei que você sempre admitiu sermos, todos, parte das engrenagens do capital, lembro-me claramente disso, inclusive quando nossos encontros eram na forma daquela ‘tríplice aliança’, rsr...Quando usei o termo “funcional da direita”, utilizei-o como expressão ideal de um conceito que está presente em seus textos, não como uma expressão que você tivesse usado ainda. O que deveria se dirigir a você em minha crítica com relação à esquerda, nesse ponto, era unicamente o que se inseria no contexto do que entendi como sendo sua forma absolutista de compreender essa questão: de que não há forma de se estar fora da direita ou da esquerda, isso ficou claro em seus textos. Para mim, tocou no procedimento geral da esquerda: como a esquerda é a ética de onde parte a crítica ao ‘pecado capital’, toda e qualquer crítica contra ela é imediatamente entendida como tendo origem diretamente nos interesses do capital ou que sirva indiretamente a ele, e dessa forma desqualificada indistintamente, um procedimento que só não ultrapassa o autoritarismo porque eu não sei o que há para além dele. Foi dessa forma que entendi, e você, claro, tem todo o direito de responder e dizer onde é que me engano, se eu não tiver então nada a opor fique certo de que me desculparei sem mais delongas. Sobre o fato da esquerda também girar as rodas do capital, é isso: ela gira, mas toda e qualquer crítica que se dirija a ela é quase que automaticamente e indistintamente (des)qualificada como de ‘direita’ e ‘reacionária’, e pra fazer essa crítica ela necessariamente precisa se esquecer de que promove o capital, ou seja, que também é de direita. Nos pés de qualquer ídolo, o pé esquerdo também é de barro. Se for possível uma comparação aqui, é quando você afirma que “Disse que há em Kundera afirmações falsas e funcionais à direita exatamente por isso”. A saber: você integra a esquerda, a esquerda gira as engrenagens do capital; logo, é funcional da direita tanto quanto Kundera ou qualquer outro. Por essa razão acho que a expressão (e a ideia, o conceito por trás) “funcional da direita” deveria ser apagada, banida. Todos somos. Espero que tenha esclarecido.
Uma outra afirmação curiosa sua é a seguinte: “são afirmações funcionais à direita[as de Kundera] porque falsas, desmontar o engodo é um dever revolucionário, é desarmar o dogma”. Não posso deixar de ver novamente seu procedimento maniqueísta de ver as coisas. Por que são falsas quando funcionais à direita? A falsidade é uma categoria política, atributo exclusivo da direita, não é um aspecto humano geral e dinâmico? Por que é negada dessa forma a verdade à direita? Precisamos acreditar que ela é falsa para desejarmos destruí-la? Se meu argumento é entendido como ‘funcional da direita’ perde imediatamente qualquer status de consideração por esse motivo, torna-se necessariamente falso por essa razão? Pudéssemos entender que a mentira existe porque a verdade é dolorosa e talvez pudéssemos ser mais indulgentes. Assim, reverto por enquanto sua afirmação numa pergunta sincera e provocativa: o dever de um revolucionário é desarmar o dogma (e o kitsch) ou fabricá-lo?
Mais uma afirmação sua para meus comentários: “não pense que não me importo com o conteúdo ideológico da minha linguagem. Defini o socialismo do leste-europeu como degenerado e registrei minhas reservas. Pela mesma razão, não percorro o caminho fácil da rejeição automática do termo socialismo real.” Bem, creio que estávamos então dizendo a mesma coisa. Esclareci essa questão antes justamente por pensar que havia censura sua a que se pudesse usar tais expressões sem participar dos interesses da direita ao usar uma linguagem entendida como da direita.
A expressão “homem do subsolo” é vaga e genérica, camarada. Pode designar tanto alguém alheio aos interesses humanos, tanto quanto lhe seja possível, como alguém que é uma espécie de ‘erva-daninha’ à sociedade, e não alheio. Um Nietzsche, por exemplo. Para este a relativização dos valores era o único fundamento da história.  
O assassinato é um valor, é justificado por um valor, pelo peso que se atribua a ele. Você afirma então que “Camus não é Mersault. Este é a radicalização de uma possibilidade (assassinato) que aquele nega. Mersault é também uma das possibilidades da insustentável leveza do ser, está contido no segundo parágrafo do livro: da negação do eterno retorno constata-se a falta de sentido, desta salta-se para a relativização dos valores, no limite justifica-se o assassinato, afinal tudo tem o mesmo valor, do ato mais vil ao mais sublime”. É justamente como eu disse antes, “adota-se uma postura extremamente perigosa ao se pensar numa revolução, ou processo revolucionário, pura, separado da violência e da burocracia como imanências, se está sempre num meio-fio...se, por um lado, ajuda a estabelecer uma linha de conduta que o distingua de outro que tenha  a conveniência, a burocracia, a violência e o assassinato como normas, por outro o aproxima de um estado tal de crença na verdade dessa separação, absolutamente falsa, que o deixa livre para justificar qualquer ato em seu nome. Do ato mais sublime ao ato mais bárbaro, as fronteiras desabam sob o peso das certezas”. Como podemos ver, o peso das certezas, no limite, justifica o assassinato. Não é, absolutamente, uma questão de exclusiva leveza, e quanto a isso a documentação histórica é tristemente farta, fato que quase me deixa pensar que é uma questão de exclusividade do peso. Vejamos o nosso mundo: crimes bárbaros são cometidos em nome das mais ridículas razões, das mais frágeis relações com a vida, dos motivos mais fúteis que nos prendem à vida, do mais repugnante peso. E justamente aqui, sob o peso, vislumbramos o que parece ser a indiferença entre o ato mais sublime e o mais vil. Mas, olhando atentamente, podemos ver algo mais dramático: o vil, que é pesado, é sempre em nome de algo que se julgou valer a pena, de determinado peso. Do pão pra comer à vida pra mudar, os motivos se tocam nos meios. Como peso, os fins sempre justificam os meios. E justificam tanto que, por fim, invertem a relação: os meios é que passam a justificar os fins. A traição é leve ou pesada? Para Sabina, que padece da insustentável leveza do ser, é antes condição de sua leveza, para ela trair é trair a ordem; para Tereza, que deu a Tomas a sensação da doce leveza do ser quando o abandonou, é pesada.

Kitsch: uma Onipresença

Sobre sua citação de que “enxergar somente o kitsch nas organizações e partidos é unilateralidade, despolitiza na exata medida em que se fixa na negatividade, é por isso um procedimento ideológico”. Você concorda que o kitsch é um fenômeno típico das massas, porém faz a ressalva de que enxergar somente o kitsch aí é ser ideológico. E cita os sovietes como um valor positivo das massas, como um fenômeno de massa que surgiu de forma mais ou menos espontânea de organização, digamos assim, não foram previamente idealizados. Ok, concordo. Ocorre que o kitsch não reside apenas no que é ideológico, muito pelo contrário. Se Kundera o afirma como condição para a fraternidade humana é justamente porque ele surge no que há de mais espontâneo. O que é mais espontâneo do que sentir felicidade com a imagem de crianças correndo pelo gramado, compaixão pelo pai abandonado, a lembrança do primeiro amor, o amor e pesar pela pátria traída? Você mesmo afirmou que o kitsch pode surgir inclusive nos sovietes. Então não se trata de achar que os sovietes ou outras organizações de massa, operárias, só produzam o kitsch, mas de que, além e apesar de toda potencialidade positiva (devo dizer que essas potencialidades positivas têm como canal condutor, conforme Kundera, justamente o kitsch, tanto que você cita os sovietes como potencialidade positiva das massas mas concorda que eles produzam também o kitsch), o kitsch será elemento presente. Se quiser podemos falar das potencialidades positivas exclusivamente, mas se nosso assunto é o kitsch aí presente é por essa razão que falamos dele, ou que eu tenha falado, precisamente. Resumindo: o ambiente natural do kitsch são as massas. Não se pode pensar que o kitsch exista em direção contrária às potencialidades positivas, ele mesmo as permite, tem relação com elas. Como o kitsch é, de forma geral, farsa, forma idealizada de uma realidade dura e não desejada, projetamos nosso desejo no único lugar possível: fora da realidade. Excluímos do que vemos como realidade seus aspectos necessariamente problemáticos, apagando do real a sua própria realidade. Para mim, é por essa razão que você ora entende que os sovietes também produzam o kitsch, ora concebe os sovietes e o kitsch como coisas absolutamente distintas. Admite o kitsch nas massas, mas também vê o soviete, organização de massas, como aquele oásis na massa em que o kitsch é negado. Admite que a massa produz o kitsch, mas afirma que também tem potencialidades positivas (eu já disse que o kitsch está junto às potencialidades positivas, mas isso não importa agora). Afirma que essa potencialidade positiva é, por exemplo, o soviete, e o exclui, o separa deliberadamente da massa kitsch. Essa postura é absolutamente mecânica, metafísica. O kitsch mascara a merda, a camufla; se inclusive os sovietes podem produzir o kitsch, como concorda, como pretender pensá-los como potencialidade exclusivamente positiva (como o oásis anti-kitsch descolado da massa), expropriando-o de seu contrário? Os sovietes não são sagrados, são mundanos e, se podem ser positivos, o são dessa forma. É por isso que Kundera afirma que a fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch. A política produz valores positivos, mas só consegue fazê-los penetrar nas massas via kitsch. Uns vêm aí seu Calcanhar de Aquiles, outros a única forma.

Kitsch e Combate

Os combatentes estrangeiros que lutaram contra o fascismo na Espanha. Meu maior adversário agora, para falar desse assunto, é exatamente o kitsch. Imaginar os combatentes das frentes anti-fascistas da Espanha, da França e de qualquer outro país, matando e morrendo, entregando suas vidas para combater a miséria do fascismo, e pretender afirmar algo qualquer como uma crítica a estes, coloca qualquer protagonista de tal empreitada no involuntário e desafortunado papel de advogado do diabo. Seria o mesmo que irmos até os rincões do nordeste para falar mal do famigerado ‘Bolsa-Família’ para o miserável que come o seu pão justamente por causa dele. Como fazê-lo sem soar ultrajante? Sabemos que entre o pão que ele come e a razão fundamental daquele pão chegar a ele existe uma má-fé, seu pão é a razão secundária em sua mesa. Não, claro que não é esse o caso dos combatentes. Ocorre que, se quero falar de aspectos críticos (e não é esse absolutamente o meu caso) em relação a esse episódio, aquela imagem kitsch de combatentes que morreram pelo bem imediatamente se interpõe. Entenda, não faço aqui nenhuma crítica a esses combatentes. Apenas digo que, achando que conheço um pouco do homem e um pouco dos aspectos da história, não sei o quanto há em mim de kitsch a enfraquecer qualquer crítica e o quanto há de razão verdadeira para fazê-la ou não fazê-la. É minha forma sincera de poder dizer que os abraço fraternalmente e de dizer que isso não poderia, jamais, impedir qualquer crítica a eles pela mesma razão de que o motivo deles e a razão de entregar suas vidas não lhes poderia blindar contra qualquer crítica. Eu diria: essa é a razão pela qual vocês entregaram suas vidas, vivam assim também. Nisso, minha maior gratidão a eles é o de saber que são iguais a mim. Por outro lado, por saber que quem coloca a carne à frente sempre tem algo a dizer, eu teria de ouvir os homens-bomba que se explodem, e que são, também, os mesmos que chicoteiam mulheres em praça pública e lhes apedreja a cabeça coberta até morrerem; os mesmos que enforcam crianças em praça pública, acusadas de homossexualismo; teria de ouvi-los e entendê-los quando me explicassem por que o fazem. Embora eles achem que essas práticas não só não sejam erradas como também são a máxima expressão da moral e do que lhes pareça o mais certo, de seu máximo caráter, eu acho que eles não têm razão, mas um homem que coloca à frente sua própria carne dificilmente me ouvirá. Nesse caso, sua carne colocada à frente pode ser o seu escudo moral. E daqui emerge Nietzsche e sua Genealogia da Moral: o espírito ressentido desses homens, que não entendem como podem ser criticados mesmo quando dão sua própria vida, é o mesmo que os faz sacralizar seus atos, o mesmo que faz brotar a culpa no coração da crítica e o mesmo que faz recuar o que pode atingir o kitsch. Isso só é compreensível ao se perceber como, ao enfraquecer o kitsch, enfraquecemos também o valor de seus atos. Vês então a força e o alcance do kitsch, presente inclusive junto a valores sublimes? Vês porque a verdade é indesejável, porque o kitsch sempre há de vencer? Uma resposta possível aqui seria a de que não temos dívidas com deuses, somos homens, e amo-te como amo a mim. E, se vale a pena dizer, essa ética ressentida é a ética religiosa, a mesma que Stirner afirmou ter sido transposta para sua forma secular pelos iluministas modernos: matamos o “além fora de nós” e recriamos “o além dentro de nós”. Se os revolucionários não fazem diferente é porque não são mais que homens, e sua causa fundamental é o homem. Suas fraquezas não destoam do resto da humanidade, são parte dela também.
Por isso, a possibilidade de que o homem do subsolo, partindo das instâncias do pensamento livre de mordaças, obrigado a ser uma criatura sem caráter, chegue a se colocar ao lado de escravistas, é, a meu ver, a mesma que se tem de tolher a liberdade, matar a si e aos outros em nome do que se tenha acima disso. É a mesma que tem o combatente da frente anti-fascista de dar sua vida à humanidade, e, no instante seguinte, colocá-la acima de qualquer crítica. É a mesma do poeta que, diante de críticas à sua fraqueza, apela para que se lembre que ele sucumbiu num mundo do qual nos salvou. Ele nos salvou desse mundo mas não salvou a si próprio do kitsch. Ou seja, é a mesma que tem o ideal de justificar o vil e o sublime e, assim, fazer o que não quer: relativizar valores. Se acaso os maiores pesos da vida, as religiões e as ideologias, tivessem relativizado um pouco mais seu próprio valor, talvez livrassem o mundo de suas maiores tragédias. Se não fosse isso uma garantia, ainda seria uma chance. Nunca esqueça que todas as grandes tragédias humanas foram consequências absolutamente diretas do peso, do valor e do caráter. Por isso, imaginar que da criatura do subsolo, por não ter mordaças e não ter caráter, parte consequentemente o comportamento imoral, é tocar novamente na mesma ética religiosa tão comentada por mim. Afinal, essa ética afirma que se Deus não existe tudo é permitido. Ela precisa e depende de um valor externo a ela mesma, pois sabe do risco que representa um homem que é sua própria e única causa.

Outras Considerações

Concordo em gênero, número e grau com você sobre a luta das classes exploradas terem conseguido avanços significativos. Ocorre que, quando falei que as promessas do ideal jamais foram concluídas, quando não traídas, me referia ao ideal revolucionário, que nunca foi o de meramente conseguir avanços significativos. Suas bandeiras iam além, iam buscar no homem o além-homem. Insisto novamente que nossa discussão não era sobre os amplos aspectos da revolução. Antes, insidiam sobre a matéria de Kundera, sobre os aspectos críticos das esquerdas. Isso não invalida, absolutamente, que você aponte quantos aspectos positivos achar relevante, mas apenas que exigir semelhante tarefa é exigir demais.
Historicizar o debate é uma tarefa que pode ser empreendida de qualquer forma, camarada. Mesmo que eu não o faça. Esse não é o ponto para mim, inclusive porque os conselhos, ou sovietes, a objetivação da democracia operária, sucumbiram, e a razão para isso pode estar na história ou na estrutura. Eu afirmei que a razão fundamental da investigação deveria ter seu foco em esclarecer os motivos disso. Porque se os mecanismos considerados como os mais democráticos sucumbem à burocracia, essa eterna contingência, parece que sua maior virtude, a democracia, é também sua maior fraqueza. O que sugerem é que são práxis que surgem sempre e sucumbem sempre. Você insiste na historicização do debate como a pretender que a resposta esteja aí, mas lembro que foi você mesmo quem se perguntou se o processo da divisão do trabalho é essencialmente alienante (sendo, teremos um problema estrutural). Se essa pergunta ainda está aberta, pode haver aí indícios que apontem para algo mais além da história.

Considerações Finais

Caro amigo...a demora desses meus comentários, em relação a seu último texto, é resultado de algumas contingências cotidianas. Estive fora da cidade por dias, quando voltei tive problemas com insônia, e agora, adivinhe...estou estudando, sem a devida dedicação, claro, para fazer a #$%@&* do Enem. Não aguento mais ser vendedor, me entenda. Por essas e outras será mais difícil que eu consiga dar continuidade no devido tempo a essa polêmica. De qualquer maneira, a menos que o asteroide Apophis altere as previsões científicas para sua possível colisão com a Terra em poucos anos e adiante assim a pulverização de nossas preciosas vidas, não digo que não o farei. Inclusive porque cientistas estudam meios de alterar sua rota ou mesmo de explodi-lo no espaço. Nós, aqui, podemos enviar uma missão de sabotagem ao plano desses cientistas intrometidos bancando deuses e acabar de vez com esse maldito acordo categórico com o ser. Não será essa ameaçazinha eterna e constante a restaurar a confiança no homem para sua eterna existência divorciada. Ou talvez seja: exatamente na pós-modernidade, quando o homem perdeu suas ilusões (ou forjou uma outra, porque não há consenso sobre se o nosso tempo vive uma espécie de nova renascença ou se encara o fim das eras), esse cometinha pode nos unir a todos na solidariedade dos vermes pisados, quando se encolhem para não serem pisados novamente.

Fraternalmente
Olavo

* Este texto é parte de um debate sobre o livro A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Os outros materiais podem ser acessados aqui: Polêmica (A insustentável leveza do ser)