14º Texto


* Nota preliminar: este texto é parte do debate sobre o romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Os textos anteriores podem ser acessados aqui: Polêmica (A insustentável leveza do ser)

JC..
Quanto ao homem do subsolo, como eu disse em meu último texto, não escapa da roda-viva, assim como ninguém escapa. E não entendi exatamente qual o primeiro capítulo do Gênese de que pode prescindir sem prejuízo do conteúdo...você usou as 3 exemplificações de Kundera do Gênese.
Sobre o Acordo Categórico com o Ser, me parece que você não quer saber muito dos desdobramentos de Kundera sobre o conceito. Novamente: A origem do kitsch é o acordo categórico com o ser. Mas qual é o fundamento do ser? Deus? A humanidade? A luta? O amor? O homem? A mulher? A esse respeito, existem várias opiniões, assim como existem várias espécies de kitsch: o kitsch católico, protestante, judeu, comunista, fascista, democrático, feminista, europeu, americano, nacional, internacional.
 Se você prefere pensar que Kundera se equivocou, ou que há contradição na definição, não sou eu quem bancará o advogado do escritor. Mas no trecho acima Kundera nega explicitamente que o Gênese seja o fundamento do Acordo Categórico com o Ser. Porque, como ele mesmo afirma, a esse respeito existem várias opiniões, cada uma com o seu acordo e com seu kitsch.
Seu tipo de raciocínio conduz a um rigor excessivo (e nocivo como tal) que, para ter coerência, precisaria entender que todas as nominações que Kundera não incluiu em seu exemplo (católico, protestante, judeu, comunista, fascista, democrático, feminista, europeu, americano, nacional, internacional), não estão sob o Acordo Categórico com o Ser, e, portanto, não produzem o kitsch. Todas as religiões africanas, asiáticas, indígenas, o racismo, o xintoísmo e tudo o mais que lembrarmos que Kundera não disse, não produzem o kitsch. Mas esse mesmo rigor, por mais esforço que faça, não conseguirá negar que o autor incluiu em sua definição o marxismo, porque lá está comunista, sem distinções.
Para além disso, o parágrafo inteiro em que Kundera descreve um desfile do 1º de Maio e exemplifica, com essa descrição, o Acordo Categórico com o Ser, não nos autoriza a imaginar que ele tenha excluído o marxismo ou o anarquismo, ou qualquer um que não afirme determinados pressupostos do Gênese, do conceito. Afinal, porque ele o faria? Se esse acordo tem por base o Gênese, tudo o que está fora dele, e não unicamente marxismo e anarquismo, não produzem o kitsch. Se faz algum sentido na obra afirmações categóricas como "a fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch" e "o kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os partidos e de todos os movimentos políticos", como e por que é ainda possível imaginar que Kundera exclua marxismo e anarquismo? Caberia tamanha ingenuidade nesse grande escritor? Prender-se num trecho isolado onde Kundera inicia a explicação do conceito, negando seus desdobramentos, é reduzi-lo e mistificá-lo. Toda a idéia do conceito presente na obra, antes de negar-se, se completam. Por isso é um romance, literatura, ensaio, e não um tratado teórico, crítico e analítico. Extrai-se a ideia acabada do conceito da obra toda, e não de um trecho minúsculo dela. Numa obra analítica, a ausência do rigor do cálculo colabora para uma má compreensão, na obra literária é a presença desse mesmo rigor que atrapalha. Medir o quanto de rigor é necessário ou desnecessário é como tentar exigir o "bom-senso", essa bobagem que não explica e nem resolve nada.
Essa aparente contradição inicial (sim, aparente porque existem outras partes) para mim tem fácil explicação: o que Kundera chama de Acordo Categórico com o Ser é um acordo com o ser enquanto tal, como ele mesmo afirma, e o início da ideia é por ele mostrado com um típico exemplo desse acordo: o Gênese. Esse não é o acordo, é apenas um acordo. Existem vários (várias opiniões, e, portanto, vários tipos de kitsch). Pronto, sem mistificações. É por isso que dá pra dizer que há kitsch na esquerda justamente pela definição de Kundera. Foi ele mesmo quem afirmou o kitsch da esquerda por essa via, e, portanto, se eu acaso estiver correto (de acordo com o autor) em como entendi o conceito, sem mistificações.
Lançar marxismo e anarquismo na definição de Kundera só é mistificação se você estiver certo e o conceito for unicamente aquele isolado no início da ideia, coisa com a qual discordo frontalmente.
“O debate entre os que afirmam que o universo foi criado por Deus e aqueles que pensam que o universo apareceu por si mesmo implica coisas que vão além de nossa compreensão e experiência. Muito mais real é a diferença entre aqueles que contestam a existência tal como foi dada ao homem (pouco importa como e por quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas.”
O que eu ressalto nesse parágrafo é justamente a ideia que ele colocou entre parênteses: pouco importa como, por quê e por quem.  Pouco importa como: se por métodos divinos ou pela história; pouco importa por quê: se para o bem ou para o mal; pouco importa por quem: se por Deus ou pelo homem.
Você tem razão o kitsch brota também do aderir sem reservas. Mas como é que o kitsch deixa de brotar ao se aderir com reservas? Para mim, o kitsch nasce da adesão, com ou sem reservas. Essas reservas, se existirem, não poderão nunca por em xeque minha adesão, que, para ser adesão de fato, precisa do kitsch (ou não virá nunca a ser adesão, permanecendo numa condição de ‘nem lá e nem cá’). O kitsch, em Kundera, é esse. Por isso é o ideal estético de todos os homens, de todos os partidos e de todos os movimentos políticos e a condição para a fraternidade.
Acho que foi Nietzsche quem disse que o filósofo prega com o exemplo. E assumo a responsabilidade de dizer que talvez (talvez) tenha sido por isso que ele criou uma filosofia do “viva a vida” ao invés de uma filosofia da morte. Nunca saberemos. E é claro que há o acordo categórico e o kitsch em Nietzsche, de acordo com o que entendi por isso em Kundera. Eu nunca achei que os grandes homens que admiro tivessem conseguido escapar dele. Ou melhor, já achei, um dia. Basta-se estar vivo.
 Acho que no conceito do Acordo Categórico com o Ser, a expressão “categórico” existe porque é, antes de mais nada, um acordo do qual não se pode fugir a priori, muito menos impor-lhe cláusulas. Quando por fim percebemos, já estamos vivos, já estamos kitsch.

 
abraços fraternos...

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