SamBalanço – Um elogio do diálogo e da amizade


Vocês, que emergirão do dilúvio
Em que afundamos
Pensem
Quando falarem das nossas fraquezas
Também nos tempos sombrios
De que escaparam
(Bertold Brecht – Aos que vão nascer)

Prezado amigo,

Os textos vão se multiplicando, as respostas exigem leituras cada vez mais longas. Pela minha conta, essa polêmica já soma 113 páginas. Mesmo assim respondo, e isso expressa valores: um elogio da amizade e sobretudo do diálogo. Na estrofe seguinte do poema acima citado, Brecht diz: Ah, e nós que queríamos preparar o chão para o amor não pudemos nós mesmos ser amigos. Creio que conseguimos ser amigos também porque escapamos de tempos sombrios. No poema As novas eras, o mesmo poeta registra: Das novas antenas vêm as velhas tolices. A sabedoria é transmitida de boca em boca. É nesse espírito que encaro esse diálogo. Adiciono mais algumas páginas organizadas por tópicos, repito algumas idéias, esclareço outras e corrijo uma.  

1º) Escrevi meu primeiro texto porque percebi que a correta tradução é insuportável leveza do ser, e não insustentável. Em A arte do romance, Kundera afirma que o problema de Tomas é a leveza da existência em um mundo em que não há eterno retorno. Me parece que este é o problema principal da própria obra.

O que Camus chama de absurdo não é muito diferente da leveza da existência em um mundo em que não há eterno retorno. Disse e repito que a vida não pode ser considerada ontologicamente insuportável porque não há eterno retorno. A insuportável leveza do ser é um estado de espírito, não é perene. A vida não tem sentido, mas nem por isso é essencialmente insuportável. Camus diz: Antes, a questão era descobrir se a vida precisava ter algum significado para ser vivida. Agora, ao contrário, ficou evidente que ela será vivida melhor se não tiver significado.

Sísifo foi condenado a rolar uma pedra morro acima eternamente. Camus usa esse exemplo para mostrar o absurdo da vida, repetimos tarefas sem sentido transcendental. Mas no mundo de Sísifo há eterno retorno, e isso é o mais terrível: repetir uma tarefa absurda eternamente. Deste fardo o homem de carne e osso está dispensado. O eterno retorno pode anular a leveza ou multiplicar o fardo, ou as duas coisas ao mesmo tempo. A desgraça de Sísifo é maior que a nossa.

2º) Uma autocrítica, um elogio do diálogo (só percebi o detalhe neste quinto texto).

Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza? A interrogação é perigosa. Se a existência é leve porque não há eterno retorno, a leveza é parte da condição humana, não temos escolha.

Kundera prossegue: Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado negativo. Teria ou não razão? Essa é a questão. Uma coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.

Na conclusão do meu primeiro texto acabei tropeçando na ambiguidade. A leveza é parte da condição humana, o peso só existiria se houvesse eterno retorno. Isso é o que fazia com que Nietzsche dissesse que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht). Pobre Sísifo. No mundo do eterno retorno estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Que ideia atroz!

Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, nossas vidas, sobre esse pano de fundo, podem aparecer em toda a sua esplêndida leveza. Kundera lança estas cascas de banana. A pergunta (pesado ou leve?) ilude porque a escolha não é possível. A vida aparece em toda sua esplêndida leveza se o pano de fundo for o eterno retorno, que é o mais pesado dos fardos.

No meu primeiro texto escorreguei na casca de banana, equivocadamente acabei pregando qualidades negativas na leveza (moléstia, enfermidade, vazio, frivolidade, futilidade, vã, oca). Agora percebo que Kundera não escolhe o peso, como afirmei, até porque isso não é possível, o homem está condenado a ser leve. Registre-se minha autocrítica.

Me parece que na sua primeira resposta você pisou na mesma casca de banana, com a diferença de que caiu para outro lado, disse que Kundera dá à leveza maior carga de enfrentamento, resistência, insubmissão, iconoclastia, tudo aquilo que, ilusória e aparentemente [...] se pode atribuir ao peso. Não é bem isso que está em questão, Kundera apenas reproduz opiniões de terceiros (Nietzsche, Parmênides, Beethoven), ele próprio não responde a pergunta que formula. Leveza não é uma opção, é parte da condição humana, da vida que vai desaparecer de uma vez por todas e não mais voltará.

Parece haver uma incoerência kunderiana (apenas parece, na verdade ele está reproduzindo uma ideia de Beethoven) na afirmação de que o peso, a necessidade e o valor são três noções íntima e profundamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa. Como opto pelo engajamento e rechaço a relativização do valor, acabei seguindo pela vereda da citação anterior, mas há uma contradição entre definir a condição humana como leve e escolher, se é condição não há escolha. Desnecessário dizer que nada disso inviabiliza que se opte pelo engajamento e pela afirmação de valores, porque neste caso a escolha é possível.

3º) Volto ao começo do meu primeiro texto, que é uma brincadeira com o primeiro parágrafo do livro: A insustentável leveza do ser é uma obra misteriosa de Milan Kundera, que, com ela, conseguiu intrigar não poucos leitores. Acrescento: intrigar e fascinar. Há dois parágrafos que não comentamos:

Vivera acorrentado a Tereza durante sete anos – ela havia seguido com o olhar todos os seus passos. Era como carregar bolas de ferro amarradas nos calcanhares. No momento, subitamente, seu passo estava mais leve. Quase voava. Estava no espaço mágico de Parmênides: saboreava a doce leveza do ser.

No sábado e no domingo Tomas tinha sentido a doce leveza do ser chegar a ele, vinda da profundeza do futuro.

Doce leveza do ser? Mas não era insuportável? Por um lado Kundera contradiz sua própria definição, por outro mostra que a existência não é ontologicamente insuportável. A leveza do ser é insuportável, suportável ou doce. Os estados de espírito se alternam. A vida que vai desaparecer de uma vez por todas e não mais voltará pode ser doce. Kundera se aproxima de Camus, a vida será mais bem vivida porque não tem significado.

E o detalhe mágico. Se a leveza pode ser doce, a tradução para o português tem seus méritos, insustentável porque a doçura não se mantém, não se sustenta. O tradutor tornou-se criador. Não se trata de escolher a leveza, que é inerente à condição humana, mas de constatar que a vida pode ser doce. Um ideal de perfeição a que os seres aspiram.

4º) Kundera diz que: Por trás de todas as crenças européias, sejam religiosas ou políticas, está o primeiro capítulo do Gênese, a ensinar que o mundo foi criado como devia ser, que o ser humano é bom e que, portanto, deve procriar. Chamemos essa crença fundamental de acordo categórico com o ser.

A esquerda anarquista e marxista não firma o acordo categórico com o ser. É neste ponto que começa a mistificação kunderiana e a nossa polêmica. Marxismo e anarquismo divergem sobre a questão do poder, mas convergem em pontos fundamentais: não crêem no Gênese, não acreditam que o mundo foi criado e não defendem que exista uma natureza humana (o ser humano não é nem bom nem mau). Ou Kundera não inclui marxismo e anarquismo na definição, ou falsifica princípios elementares de ambos. Como me parece que a segunda opção é a correta, afirmei que ele despolitiza, ou seja, é ideológico e reforça a falsa consciência. Então discordo de ti. Não é correto dizer que a crítica kunderiana é radical demais a ponto de não permitir fuga honesta, em verdade a crítica é desonesta na exata medida em que falsifica princípios elementares, generalizando para além do razoável.

O acordo categórico com o ser se ergue sobre três pilares: a crença no Gênese, na criação do mundo (criacionismo) e na natureza humana (o ser humano é bom). Marxismo e anarquismo rechaçam esses três pilares. É o pensamento reacionário que se baseia nos pilares citados. Por isso afirmei que o acordo categórico com o ser é o arranjo estético-filosófico das épocas reacionárias, acrescento dizendo que é o arranjo estético-filosófico do pensamento reacionário. Pelo mesmo caminho conclui que Sabina e nós firmamos um desacordo categórico com o ser, afinal, não aceitamos os três pilares.

Kundera diz que o kitsch é o ideal estético do acordo categórico com o ser, afirmação com a qual concordamos. A divergência reside na mistificação posterior: o kitsch é o ideal estético de todos os homens políticos, de todos os partidos e movimentos políticos. Ora, então está dito que anarquistas e marxistas (homens, partidos e movimentos) acreditam no primeiro capítulo do Gênese, na criação do mundo e na natureza humana. Esse procedimento é desleal. Kundera não desarma dogmas, fabrica-os.

Pelo que foi dito acima, fica claro que o kitsch não pode ser um ideal estético nem de marxista, nem de anarquista; uns e outros rechaçam o acordo categórico com o ser. O ateísmo de marxistas e anarquistas somado ao fato de que ambos não crêem na existência de uma natureza humana desarma a mistificação kunderiana. Creio que ficou claro que isso não é crítica panfletária, é uma refutação da conclusão a partir da negação de suas premissas.   

É fato que existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Empurrado pela janela, o kitsch pode retornar por debaixo da porta. Não nego o risco do kitsch, nego a mistificação kunderiana e a sobrevalorização do problema. Ao pé da letra e dos princípios, não há kitsch nem no marxismo e nem no anarquismo, mas sabemos que valores milenares não morrem facilmente, os três pilares do acordo categórico inclusive, mas por esse critério a esquerda (marxistas e anarquistas) é tão vulnerável quanto o homem do subsolo, ou até menos, já que se expõe a um processo de crítica coletiva, o que não ocorre nas profundezas do subsolo.

5º) O acordo categórico se baseia no primeiro capítulo do Gênese, ou três pilares, como afirmei no item anterior. Sendo o kitsch o ideal estético do acordo categórico com o ser, a revolução está fadada ao enfrentamento com a religião judaico-cristã, base do kitsch e do pensamento reacionário. Até aqui não há novidade, a novidade é que Kundera define todos os movimentos políticos (anarquistas e marxistas inclusive) como seguidores do primeiro capítulo do Gênese: O kitsch é o ideal estético de todos os homens políticos, de todos os partidos e movimentos políticos. A mistificação, ou má-fé está neste ponto, na generalização. Mas é um procedimento muito primário e facilmente refutável, basta lembrar que nem marxismo e nem anarquismo defendem os três pilares. De qualquer forma, sua citação realmente aponta para a generalização kunderiana: Nenhum de nós é sobre-humano a ponto de poder escapar completamente ao kitsch. Por maior que seja o nosso desprezo por ele, o kitsch faz parte da condição humana. Como o kitsch é o reflexo do acordo categórico e, consequentemente, do primeiro capítulo do Gênese, Kundera prega o Gênese na condição humana. Que mito insensato!

Há ainda outro caminho para ser trilhado, a barreira que o kitsch representa para o crescimento dos partidos e organizações de esquerda. Considerando os três pilares do acordo categórico, enfrentar o kitsch é enfrentar a religiosidade judaico-cristã. É um problema, mas não é um limite, principalmente se acreditamos que a estrutura econômica determina as ideias. O acordo categórico conduz à ética da servidão voluntária, não precisa ser transformado um mundo que foi criado como devia ser. Mais que isso. Se há um criador, as possibilidades de criação humana são mínimas, estão limitadas de antemão. A revolução precisa desfazer o acordo, precisa forjar uma ética da revolta.

A obra de Camus é portadora de um ensinamento fundamental: a fraternidade pode ter a revolta como base. Eu me revolto, logo existimos.   

6º) Kundera dá pistas sobre como superar o kitsch: o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que interroga. A pergunta é como uma faca que rasga o pano de fundo do cenário para que se veja o que está por detrás. O homem interroga através da discordância, do ceticismo e da ironia.

Parênteses. Me parece que falamos de liberdade em sentidos diferentes, ainda que não excludentes, me refiro à liberdade política e você à liberdade de consciência. Me corrija se não for isso. Ocorre que uma coisa não invalida a outra, pelo contrário. A consciência pode e deve ser livre no sentido que você coloca, o inferno, ou o limite, serão os outros. A liberdade política é que permite a existência do homem que interroga, por isso defendo a democracia operária e, consequentemente, a discordância, o ceticismo e a ironia. Como ninguém ocupa o trono das verdades, o homem que interroga é fundamental, neste sentido a redenção é o outro.

Liberdade para Rosa Luxemburgo é sobretudo política: liberdade de imprensa, de organização e de opinião. Rosa percebeu a importância dos sovites desde 1905. Em 1918 ela dizia que a revolução russa só sobreviveria se os sovietes sobrevivessem. Acertou. Os sovietes foram burocratizados e a revolução morreu.

Repetidas vezes tentei historicizar este debate. Disse que reivindico os conselhos, ou sovietes. Estes são a objetivização da democracia operária, ou direta, ou autogestão. E são práxis, surgem sempre que os explorados se levantam: cordões industriais chilenos, assembleias de bairro argentinas, comuna de Paris etc. Os conselhos ou sovietes são o espaço de auto-organização política e econômica, onde se permite interrogar e organizar as coisas de baixo para cima. Por isso a expressão fortalecer a democracia operária faz sentido há muito tempo, inclusive porque é práxis.

Estado soviético é uma contradição nos termos, nenhum Estado pode ser soviético, os conselhos são a negação do Estado. Se quer imaginar o fim do Estado, mire nos sovietes. Óbvio que um revolucionário sincero precisa avaliar porque as experiências soviéticas não prosperaram, para isso é preciso partir para o concreto, historicizando o debate.

Todo discurso é portador de um projeto de poder, concordo com Barthes. Meu discurso é portador de um projeto de poder tanto quanto o seu, o dele e os demais. Como resolver esse “problema”? Nas assembleias, no embate livre e leal de ideias. Isso é democracia operária. O projeto de poder ou palavra de ordem embutida no meu discurso é todo poder aos sovietes!

Você fez uma digressão acusatória sobre minha concepção de liberdade. Disse que entendo a liberdade como permissão, autorização. Seu procedimento é autoritário e perigoso, penetra no cérebro e fala pelo outro. Quem defende a democracia operária (assembleias e conselhos) o faz exatamente porque nega a liberdade dos ditadores. A liberdade de consciência pode e deve ser total, mas seu portador, o indivíduo, se quiser convencer os demais precisará de fóruns e espaços para isso, fortalecer estes é fortalecer a democracia operária. Desnecessário dizer que o capitalismo exclui a democracia na exata medida em que impõe a valorização do capital, esse princípio, entre outros, está fora de questão. Sendo assim, democracia verdadeira só pode ser a dos trabalhadores.

Democracia operária se aprende na prática: nas reuniões, assembleias, manifestações, debates, discussões. É práxis. Desacostumado ao convívio social e ao embate de ideias, o homem do subsolo tende a confundir discordância com tirania. Se me sentisse um deus sentado no trono das verdades, por que esticaria esse debate?   

Voltando ao primeiro parágrafo desse item. Kundera oferece um problema (kitsch) e sua solução (a faca redentora do homem que interroga), Sabina interroga com sua arte (na frente, a mentira inteligível; por detrás, a verdade incompreensível.), mas não luta diretamente pelo direito de existência do homem que interroga. Não se trata de cobrar Sabina, o que seria realmente uma tolice autoritária, a questão é mostrar que há mais de uma síntese possível. O homem político que luta pelo direito de expressão do homem que interroga é uma possibilidade. Escrevi meu primeiro texto para mostrar que há outras possibilidades na obra, que é grande também por isso. Defender a politização contra o kitsch é defender a existência do homem, dos partidos, movimentos e das organizações que interrogam.

7º) Concordo que somos parte das engrenagens do capital, consumimos mercadorias e vendemos nossa força de trabalho. Nunca condenei ninguém por isso. O Sr. me atribui uma ação que não pratiquei. Sempre critiquei quem diz que não gira as manivelas do capital. Concordo que um homem só pode ser julgado por suas recusas e afirmações. Como registrou Sartre: O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós. Neste ponto o homem do subsolo se separa do revolucionário: o primeiro se isola, o segundo tenta forjar mecanismos para contrapor engrenagens opressoras. São escolhas e, definitivamente, uma não é moral e eticamente superior à outra, pelo menos enquanto não começa a agir, neste ponto as coisas podem mudar.

Kundera compara Raskolnikov e Josfh K: em Dostoiévski o crime busca o castigo, em Kafka o castigo busca o crime. Não estamos muito distantes do pecado original. Nunca proferi qualquer julgamento moral contra os que se encontram na mesma condição que eu, pelo contrário, sempre neguei que seja possível viver sob o capitalismo sem girar suas manivelas. Se a esquerda lhe fez esse tipo de crítica, é preciso dizer que esquerda, nunca fiz esse tipo de acusação contra ninguém pela simples razão de que considero-a ridícula. É bom especificar as coisas, se não ser de esquerda torna-se um pecado original.

Disse que há em Kundera afirmações falsas e funcionais à direita exatamente por isso. Por exemplo: Por trás de todas as crenças européias, sejam religiosas ou políticas, está o primeiro capítulo do Gênese. E: kitsch é o ideal estético de todos os homens políticos, de todos os partidos e movimentos políticos. Neste texto discuto o equívoco das generalizações para além do razoável. Repito: são afirmações funcionais à direita porque falsas, desmontar o engodo é um dever revolucionário, é desarmar o dogma.

8º) Não pense que não me importo com o conteúdo ideológico da minha linguagem. Defini o socialismo do leste-europeu como degenerado e registrei minhas reservas. Pela mesma razão, não percorro o caminho fácil da rejeição automática do termo socialismo real. Não me isento nem da responsabilidade pela exclusão do termo e nem da responsabilidade pela história. Um militante sincero sabe que, em alguma medida, os riscos de degeneração são imanentes. Por isso defendo os sovietes e a democracia operária, creio que esta e aqueles são capazes de contrapor a burocratização, como mostrou a Rosa Vermelha. Fortalecer a democracia operária e seus mecanismos é o único caminho possível.

9º) O homem não nasce culpado, não há pecado original, mas os seus valores cobram responsabilidades. Um revolucionário sincero deve considerar os riscos imanentes de sua escolha e, no limite furar os olhos, como cobrou Tomas. Creio que o mesmo critério é válido para o homem do subsolo, a não ser que sejam relativizados valores e as consequências dos valores.

10º) Camus não é Mersault. Este é a radicalização de uma possibilidade (assassinato) que aquele nega. Mersault é também uma das possibilidades da insustentável leveza do ser, está contido no segundo parágrafo do livro: da negação do eterno retorno constata-se a falta de sentido, desta salta-se para a relativização dos valores, no limite justifica-se o assassinato, afinal tudo tem o mesmo valor, do ato mais vil ao mais sublime. Repito: a obra de Camus se levanta contra esse tipo de reflexão, a polêmica contra Sartre fala por si. Um homem sem valores é uma ficção anticientífica, inclusive porque a relativização (desvalorização) do valor não deixa de ser um valor. Se não há diferença entre o ato mais sublime e o mais vil, também não há entre escravistas e quilombolas e assim por diante. Esse tipo de raciocínio é, ele sim, absurdo.

11º) Esclarecendo. Afirmei que enxergar somente o kitsch nas organizações e partidos é unilateralidade, despolitiza na exata medida em que se fixa na negatividade, é por isso um procedimento ideológico. Kundera afirma e você endossa que o kitsch é um fenômeno típico das massas, concordo, seria ideológico negar isso. Mas também é ideológico enxergar somente o kitsch, por isso tentei historicizar o debate citando os sovietes, que são também um fenômeno de massa, ninguém os idealizou antecipadamente, surgiram na luta concreta do proletariado. A unilateralidade consiste em excluir a potencialidade positiva das massas. Sovietes ou kitsch? Positividade ou o contrário? Kundera tende a enxergar somente negatividade nas massas, é por isso ideológico. Massas, organizações e partidos políticos produziram sovietes, comunas, autogestão. Estas criações são positivas ou não? Tanto faz? Então nenhum? Enfim, é nesse sentido que crítico quem se fixa apenas na negatividade.

Um exemplo. Penso nos combatentes estrangeiros que lutaram contra o fascismo na Espanha. O homem do subsolo pode afirmar que a base da fraternidade é o kitsch, pode, inclusive, chegar ao ponto de relativizar valores revolucionários, mas deveria ouvir esses combatentes. Quem coloca a própria carne à frente sempre tem algo a dizer, no mínimo afirma que seus ideais são mais importantes que sua vida.

12º) O ser humano está condenado a ser livre, partindo das instâncias do pensamento livre de mordaças, obrigado a ser uma criatura sem caráter, o homem do subsolo chegaria a se colocar ao lado de escravistas? Creio que não. A inexistência do eterno retorno pode significar que a vida não tem sentido, mas não significa que resistir e escravizar são a mesma coisa. Assim recomeçamos a estabelecer valores absurdos, ou a partir do absurdo.   

13º) Você afirma, com razão, que as promessas do ideal jamais foram concluídas, quando não traídas. Como homem de esquerda, assumo todos os riscos que decorrem da minha escolha. Mas fecho com o verso brechtiano: Pensem, quando falarem das nossas fraquezas, também nos tempos sombrios de que escaparam.  Se é verdade que as promessas do ideal não foram concluídas, é também verdade que pela luta as classes exploradas conseguiram avanços significativos. Analisar somente as promessas não concluídas é se fixar na negatividade, ou na unilateralidade. Um exemplo. Se há menos escravos e senzalas, é porque houve resistência: fugas, quilombos, suicídios, assaltos à Casa Grande.

Enquanto a humanidade estiver divida em classes, o motor da história continuará sendo a luta.

JC

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