O peso insuportável da leveza

Muss es sein?
(Tem de ser assim?)
Es muss sein!
(Tem de ser!)
Es muss sein!
(Tem de ser!)

Palavras preliminares

A insustentável leveza do ser é uma obra misteriosa de Milan Kundera, que, com ela, conseguiu intrigar não poucos leitores. O espanto começa na citação de Nietzsche e do eterno retorno, no primeiro parágrafo; passa pelas palavras incompreendidas; vai de Praga à Suíça; do kitsch à merda; do título à última linha; e retorna. Pensar que a leveza do ser não se sustenta... Quanto pesa o ser? Por que a leveza do ser é insustentável? Que significado terá este mito insensato?

Quanto mais pesado o fardo, mais restritos serão nossos movimentos, ficamos presos ao solo. Mas o peso não é necessariamente negativo. Segundo Kundera, na poesia amorosa de todos séculos a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo corresponderia ao ideal mais elevado de realização vital. O exemplo é ridículo, dissolve-se com a simples alternância da posição do coito. Mas a questão não se resolve tão facilmente. A leveza total faz o ser levitar livre e fútil, tão insignificante que suas escolhas não pesam mais que uma pluma. Todo valor se anula. Então o que escolher? Será atroz o peso e bela a leveza?

Vinte e tantos séculos antes, na Grécia, Parmênides já se perguntava qual era pólo positivo da contradição: peso ou leveza? Para ele o primeiro é negativo e segundo positivo.

Palavras compreendidas

Na terceira parte do livro, As palavras incompreendidas, Kundera trata do fardo dos relacionamentos amorosos, do peso das barreiras da comunicação. Idiossincrasia de cada um. Toneladas de incompreensão. Insegurança. O implicar com a posição da escova de dentes, com a dobra do pijama... O pudor.

Tomas é um sedutor que procura o que há de único em cada mulher. Nos vinte e cinco anos de sua via sexual ele estima que teve duzentas amantes, média de oito novas mulheres por ano. Contra o tédio e a banalidade monogâmica, Tomas formula e segue a regra do três: no curto prazo, nunca encontrar a mesma amante mais que três vezes; no longo prazo, para manter a mesma amante, é preciso deixar passar pelo menos três semanas entre os encontros.

Mas detalhes se oferecem aos poucos. É provável que a primeira parte da regra do três – nunca encontrar a mesma mulher mais do que três vezes seguida – tenha impedido Tomas de descobrir detalhes únicos das suas amantes. Ou seriam detalhes para não se perceber? Ou seria Tomas um consumista do amor?

Ao rever (talvez violando a regra do três) a película A insustentável leveza do ser me surpreendi. Em espanhol, o título do filme é La insoportable levedad del ser. Desabou a minha interpretação. Insuportável não é insustentável.

Procurei e encontrei o título original do filme em inglês: The unbearable lightness of being. Depois da consulta aos tradutores eletrônicos, quase não restou dúvida. A tradução do adjetivo unbearable é insuportável ou intolerável. Ou seja, muito distante de insustentável. A internet e os dicionários virtuais contradizem a tradução para o português. O título original em tcheco é Nesnesitelná lehkost bytí. A palavra nesnesitelná aproxima-se de insuportável.

O golpe de misericórdia veio com a leitura de um texto teórico de Kundera, A arte do romance. Apesar da tradução como insustentável leveza, estava claro que o adjetivo correto seria insuportável. Os tradutores brasileiros e portugueses realmente haviam aliviado o peso do título do principal romance de Kundera e, conseqüentemente, também seu conteúdo. Cordialidade à la Sergio Buarque? É  possível.

A leveza, se insustentável, pode ser positiva. Um ideal de perfeição a que os seres aspiram. A existência é insuportável porque a leveza não é sustentável. Se a leveza fosse perene a existência seria suportável. Era esta a minha interpretação. Forças poderosas jogariam peso para inviabilizar a leveza. A burocracia estalinista canalha seria uma força sufocando a leveza dos personagens. Os grilhões do casamento idem. Em alguma medida o amor fixo de Tomas por Tereza seria também um agente do peso contra a leveza. A luta de Tomas seria para aliviar a carga de seu ser. A vida seria uma peleja perpétua da leveza contra as forças que a inviabilizam.

Mas, se a leveza é insuportável, desabam os cenários. As coisas ficam nubladas. O caráter positivo é dissolvido. Explica-se, dessa forma, por que, no amor, Sabina sofre ao invés de gozar a leveza de seu ser. Kundera aproxima-se de Camus. Para este, o absurdo é uma doença do espírito, um desabar de cenários, um divórcio entre o homem e sua vida. Segundo Camus, esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade.

Em A arte do romance, Milan Kundera expressa semelhante sensibilidade absurda com outras palavras: Depois de ter conseguido milagres nas ciências e na técnica, este “senhor e dono” [o homem] se dá conta subitamente de que não possui nada e não é senhor nem da natureza (ela se retira, pouco a pouco do planeta) nem da história (ela lhe escapou) nem de si mesmo (ele é guiado pelas forças irracionais de sua alma). Mas se Deus foi embora e o homem não é mais senhor, quem então é o senhor? O planeta caminha no vazio sem nenhum senhor. Eis a insustentável leveza do ser.     

Aqui a correta tradução seria insuportável, sem dúvida. E a leveza é negativa. O homem carece de Deus. A reflexão de Kundera, se continuada, pode apontar para o suicídio, como em Camus. O dom juanismo de Tomas não redime o fardo da existência.

Se a vida é absurda e insuportável, só resta uma possibilidade: recriá-la. Não é por acaso que homens como Albert Camus e Milan Kundera caminharam para a literatura e o romance.

O feitiço de Tomas

Um epitáfio: Desejava o Reino de Deus sobre a terra. Na lápide de qualquer cristão seria apenas mais uma frase, se registrada na campa de um libertino ateu as coisas mudam. Mas saltemos da morte para trás, do pó para a vida. 

Kundera afirma que seus personagens são o conjunto de suas possibilidades pessoais não realizadas, todos atravessaram a fronteira que o autor se limitou a contornar. Tomas é mais do que isso. Ele é o conjunto de aspirações não realizadas dos leitores. Seduzir alguém com uma frase simples, um tire a roupa... Experimentar o amor por uma única pessoa e a poligamia ao mesmo tempo... Ser íntegro e não se curvar aos burrocratas estalinistas... Tomas encanta e confunde como todo sedutor.

A poligamia de Tomas ilude, passa a falsa sensação de fluidez e leveza. Uma leitura desatenta tende a igualar Tomas à sua principal amante, Sabina, como se ela fosse a versão feminina dele ou o inverso. Ilusão. Sabina recusa as algemas da monogamia, abandona Franz exatamente quando este rompeu seu casamento para ficar exclusivamente com ela.

Para Tomas, o amor não se manifesta pela atração sexual, que é quase infinita; é o desejo do sono compartilhado que certifica a presença do amor. Ele nunca dormia com suas amantes. Depois do ato sexual Tomas sentia a imperiosa necessidade de ficar só. Acordar à noite ao lado de uma criatura estranha era-lhe profundamente desagradável, como o despertar matinal e o café da manhã compartilhado. Num dos primeiros encontros amorosos com Teresa, Tomas se surpreendeu ao acordar ao lado da moça, que segurava-lhe a mão com força. Pela primeira vez ele sentia o prazer do sono partilhado. A leveza do ser se dissolve. O peso do amor se impõe.

Sabina nunca sentiu o prazer sono compartilhado e do amor. Ela aspira à leveza amorosa. E padece da insuportável leveza do ser, que é o mais cruel dos fardos. Sobre os ombros de Tomas pesa a carga da existência e não a leveza do ser. Mas a coragem custa caro, o prestigiado cirurgião é transformado em limpador de vidros por ousar retornar à República Tcheca, é a fatura do amor, o preço do sono compartilhado com Tereza. 

Tomas encanta porque explode o muro que separa o amor por uma pessoa do desejo por outras, porque é fluido sem ser fútil. Ele é todo engajamento e escolha. Tomas seduz e enfeitiça.

As traições de Sabina

O mundo é bom, os homens são bons e foram criados à imagem e semelhança de Deus e, portanto, devem se multiplicar. Kundera dá a esta crença o nome de acordo categórico com o ser. O kitsch é o ideal estético-filosófico dos que firmam o acordo categórico com o ser, é uma tentativa desesperada de negação da merda. A merda é a prova definitiva do caráter inaceitável da criação. O kitsch é uma  tentativa de disfarçar a presença da merda. Mas das duas uma: ou a merda é inaceitável (e, nesse caso, não precisamos nos trancar no banheiro), ou Deus nos criou de maneira inadmissível.

O acordo categórico com o ser é o arranjo estético-filosófico das épocas reacionárias. A República Tcheca de Tomas e Sabina vivia sob o tacão do estalinismo e do acordo categórico com o ser.

Sabina afirma que, no reino do kitsch, Tomas seria um monstro. O mesmo se aplica a ela. É a traição e não a fidelidade que seduzia Sabina. Mas aqui é preciso reposicionar as coisas, para Sabina a traição é, em verdade, a expressão de seu desacordo categórico com o ser, trair é sair da ordem e partir para o desconhecido. Sabina não conhece nada mais belo que partir para o desconhecido. As traições de Sabina são, sobretudo, iconoclastia e subversão contra a compaixão cristã, contra a transformação da música em barulho, contra a era da feiúra total.

Numa leitura apressada tende-se a associar Tomas a Sabina,  como se ele fosse a versão masculina dela. Errado. Tomas é o conjunto das possibilidades não realizadas de Sabina, e o inverso é verdadeiro. Ela não conhece e nem procura conhecer o prazer do sono compartilhado. Sabina aspira à leveza e ao desprendimento amoroso. Mas ela não é plena de leveza, sua vida e seus quadros são um enfrentamento contra o kitsch. No primeiro plano sempre um mundo perfeitamente realista, ao fundo, escondido, sempre algo misterioso e abstrato. Na frente a mentira inteligível, por trás a verdade incompreensível.


Sob os ombros de Sabina pesa o desacordo categórico com o ser. Suas traições são atos subversivos contra o kitsch e a era da feiúra total. Sabina recusa a ordem firmada.


Palavras finais

Afinal: peso ou leveza? Peso de Tomas e Sabina? Leveza para Parmênides. Peso para Kundera. E aqui a tradução incorreta para o português é prejudicial, fosse a leveza adjetivada como insuportável já no título, as coisas seriam menos confusas. Por outro lado, a tradução imprecisa acrescenta mistério e fascínio. O fato é que a leveza do ser é moléstia e enfermidade, e não redenção como pode parecer inicialmente. A leveza é vazia, frívola, fútil, vã, oca. O peso é comprometimento e tomada de posição, tão perigoso quanto necessário.

O peso é belo mas doloroso. O peso, a necessidade e o valor são três noções íntima e profundamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa. Com essas palavras Kundera se afasta de Parmênides, alistando-se no pólo oposto da contradição. 

O livro de Kundera é um convite ao engajamento, a leveza é insuportável porque o engajamento é necessário, apesar de todos os riscos. É assim sob autoritarismo estalinista ou sob toneladas inúteis de mercadorias do capitalismo. Um ser pleno de leveza é capaz de levitar indiferente sobre qualquer realidade, mesmo a mais hostil, mas o preço a pagar será a futilidade e o vazio. A leveza do ser é insuportável porque anula o espírito criador e a perspectiva de intervir sobre as coisas. Leveza é capitulação.

A indiferença da leveza é angustiante. Já a tomada de posição pode implicar numa forte carga de dor, mas é preferível. O engajamento é necessário no amor e na política, na República Tcheca invadida pelos tanques russos e no mundo capitalista asfixiado pelas mercadorias. 

Camus afirma que as grandes obras sempre expressam mais do que têm consciência de dizer. É o caso de A insustentável leveza do ser, que, sobretudo, afirma muito mais do que transparece em leituras afoitas. O livro de Kundera é muito mais do que uma simples crítica ao socialismo degenerado do leste europeu, como pensa o direitista tacanho. É possível imaginar Tomas e Sabina em Praga, Washington, Paris, Buenos Aires ou São Paulo. A insustentável leveza do ser cobra engajamento contra o acordo categórico com o ser, que é, fundamentalmente, o ideal estético-filosófico da direita.

JC

2 comentários:

Anônimo disse...

mandei um comentário no seu e-mail, o espaço aqui é pequeno..

JC disse...

Ok. Comentário publicado logo acima. Valeu.