DE MACHADO DE ASSIS A SÉRGIO BIANCHI: A CAUSA SECRETA E O DRAMA DO RATO

Na frente o rótulo declarado, no verso a verdade inconfessável. Ou: a causa secreta. Gouveia levou uma facada e foi socorrido por Fortunato e Garcia, este era estudante de medicina e se apaixonou por Maria Luísa, esta era casada com Fortunato. Garcia passou a frequentar a casa de Fortunato porque amava Maria Luísa. Fortunato era enfermeiro, no rótulo; mas no verso, sentia prazer com a dor alheia, por isso socorreu Gouveia e por isso torturava animais. Fortunato não conheceu o cinema, mas ia ao teatro e redobrava a atenção para apreciar facadas e outras cenas violentas. Hoje, ele teria ereções assistindo telejornais. Garcia era estudante de medicina, no rótulo; mas no verso, era curioso, possuía a faculdade de decompor caracteres e de decifrar os homens, tinha amor pela análise, gostava de penetrar nas camadas morais dos outros, por isso começou a observar Fortunato, que lhe intrigava.

Machado de Assis também possuía a faculdade de decifrar os homens, gostava de penetrar nas camadas morais dos outros, mostrava o verso do rótulo, sentia prazer ao revelar a miséria moral alheia. Por isso escreveu Dom Casmurro, A Causa Secreta... Por isso criou Brás Cubas, Quincas Borba, Simão Bacamarte, Fortunato, Garcia. Foi um escritor genial. Sérgio Bianchi gosta de esfregar o verso do rótulo na cara das pessoas, na cara do Brasil. Por isso costuma meter o dedo e a mão nas feridas do nosso tempo (Fortunato gozaria com essa imagem). Porque gosta de esfregar o verso do rótulo na cara dos outros, Bianchi estabeleceu um diálogo entre seu cinema e a literatura de Machado de Assis. Seu filme Quanto Vale ou é por Quilo dialoga com o conto Pai contra Mãe, A Causa Secreta dialoga com o conto homônimo de Machado de Assis.

Atenção, luz amarela: dizer que um filme dialoga com a literatura não é dizer que ele baseia-se ou é uma adaptação de uma obra literária. Bianchi, que parece ser um sujeito com alguma ousadia, não se limitou a adaptar literatura para o cinema, deu um passo à frente, fez uma experiência de linguagem, dialogou com Machado. Exemplo: enquanto Machado mostra um homem (Fortunato) que tem prazer com a dor alheia, Bianchi retrata homens indiferentes à dor alheia. Nestes tempos pantanosos, qualquer espertinho pode ganhar uma bolada, via edital público, para “simplificar” um texto machadiano. Por outro lado, dialogar com a obra do “bruxo do Cosme Velho”, como fez Bianchi, exige mais do que a fome por vinténs, tão comum aos agregados de Machado e aos simplificadores do nosso tempo. Ironia da história: a simplificadora que “reescreveu” O Alienista, do Machado, com certeza seria internada pelo alienista Simão Bacamarte, do Machado, resta saber se por avareza, indigência intelectual ou as duas coisas.

Outra ironia da história: também Bianchi depende da bufunfa dos editais públicos para tocar seu trabalho. No filme A Causa Secreta um diretor de teatro tenta adaptar o conto A Causa Secreta, mas, para isso, depende da bufunfa dos editais públicos e passa por não poucos apertos para consegui-la. Aqui o filme se afasta do conto machadiano para se aproximar da realidade atual. A ironia mais afiada é sempre aquela que corta o bucho do seu criador, Bianchi vira personagem de si próprio, cineasta na vida real, diretor de teatro no filme. No final da película, depois de todas as críticas aos mecanismos de financiamento, aparecem os créditos do filme: um banco público (depois seria privatizado) e outras instituições.

Voltando ao filme. O diretor de teatro gosta de observar e penetrar nas camadas morais do outros, como Garcia. Por isso e para esfregar o verso do rótulo na cara dos outros, o diretor de teatro faz os atores meterem os pés na realidade pantanosa do país, por exemplo: visitando clínicas e hospitais públicos sucateados. Nessa hora, se vê a mediocridade por baixo do rótulo ator. A mediocridade une o mauricinho de direita ao esquerdista de boteco, que atuam na mesma peça e, por inércia, constroem o país da Casa Grande e da Senzala. Talvez esta seja a fonte da impotência que choca nos filmes de Bianchi, não é o país nem o mundo que são cronicamente inviáveis, é o individuo isolado e amesquinhado que é cronicamente impotente para transformar as coisas. Não é que o país e o mundo sejam cronicamente viáveis, com certeza são mais inviáveis do que viáveis, mas se fossem necessariamente e com certeza inviáveis, Bianchi estaria ganhando dinheiro produzindo versões simplificadas dos livros de Machado de Assis, e não dialogando com o “bruxo do Cosme Velho”, estaria enlatando produtos mais rentáveis e de fácil de digestão, e não rodando filmes indigestos e com pouco apelo comercial. Com seu trabalho, Bianchi mostra, querendo ou não, que acredita no cinema e na arte, e acreditar é o primeiro passo no caminho para criar e transformar. Assim sendo, nem tudo está perdido, nem tudo é cronicamente inviável, mas essa é outra questão.

Dizem os conhecedores da sétima arte que A Causa Secreta deixa a desejar na qualidade técnica: planos mal iluminados e mal enfocados. Mas esse não é foco deste texto, pretendo explorar A Causa Secreta como experiência de linguagem, como diálogo do cinema com a literatura. Uma cena se repete no conto de Machado e no filme de Bianchi: com a mão direita Fortunato segura uma tesoura, com a esquerda um barbante na ponta do qual está amarrado um rato, ele corta uma pata do animal e em seguida o faz descer na direção da chama de uma espiriteira, o rato grita de dor e desespero, Fortunato repete a operação outras três vezes, arrancando as patas do animal e descendo-o na direção da chama com cuidado para não matá-lo, por fim ele corta o focinho do rato e desce o bicho em direção à chama, o animal morre e vira um pedaço de carne cheio de sangue e pelos chamuscados. No conto, Garcia, que gostava de observar as camadas morais escondidas e de decifrar os outros, vê a cena e conclui que Fortunato tem prazer com a dor alheia. O filme não explora essa reflexão de Garcia, talvez porque o cinema não é capaz de penetrar nas camadas morais dos personagens como a literatura, ou, melhor dizendo: o cinema tem mais dificuldade para reproduzir com palavras o pensamento de um personagem, teria que apelar para um narrador, o que nem sempre é funcional. Por outro lado, o cinema com seu poder de imagem e de som, ao mostrar um rato sendo torturado, cria uma cena que é mais forte na tela do que no papel. Parafraseando João Cabral: o rato do filme é mais espesso do que o rato do conto. Neste ponto a experiência de linguagem de Bianchi é interessante, mostra que o cinema é capaz de dialogar de igual para igual com a literatura. Não é pouco.

Surge outra questão. E o rato? É aceitável torturar e matar um animal, ainda que seja um rato, em nome da arte? Conscientemente ou não, Bianchi deixou uma ratoeira no caminho do expectador, que se incomoda mais com o rato do que com os pacientes abandonados nas clínicas e hospitais sucateados, mais com o rato do que com as crianças de rua que aparecem no filme. Um rato é mais espesso do que um homem?


Bianchi é conhecido por seu cinema provocador: A Causa Secreta, Cronicamente Inviável, Quanto Vale ou é por Quilo. Nestes três filmes ele denuncia a acomodação ao sofrimento alheio típica do indivíduo amesquinhado pelo modo capitalista de produção, no mundo do capital a mesquinharia se transformou em colete salva-vidas. É por isso que o cinema de Bianchi choca, ele é um espelho que revela baixezas debaixo das camadas morais dos expectadores. Só por isso já valeria a pena, o diálogo com Machado é ainda mais interessante. Mas… Essas duas coisas justificam a tortura do rato?

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