HÁ MUITAS NOITES DENTRO DA NOITE
“O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade”¹
A
poesia de Ferreira Gullar transporta para tardes que já passaram, mede a
velocidade da noite, contempla o lento apodrecer das frutas no cesto, recruta
os legumes que ficaram por vender, fotografa cenas desaparecidas ou não
identificáveis a olho nu. O cinema de Silvio Tendler recorta e costura
acontecimentos, constrói abrigos contra o esquecimento, conduz por onde a luz é
pouca. Do encontro do poeta com o documentarista surgiu a série “Há
muitas noites na noite”², cinebiografia do Poema Sujo e,
por tabela, de Ferreira Gullar.
Gullar
é um poeta orgânico, seus versos descascam, trocam de cor como a matéria que
apodrece, têm cheiro de mangue e de sexo. Nos anos 1950, o poeta foi do
Maranhão para o Rio de Janeiro, e se aproximou do concretismo e do Partido Comunista.
Depois se afastou de ambos.
Tenho
a sensação de que a poesia do maranhense não cabia na estética concretista,
seria um bicho concretado vivo. Após a ruptura, Gullar afirmou que o
concretismo é a arte de quem não tem nada para dizer, já os concretistas
aplicaram-lhe sovas bem dadas e com razão. Interessa pontuar, por aqui, que a
poesia de Ferreira Gullar é sensual e orgânica, enquanto a poesia concretista é
mineral e inorgânica. Ou
seja, são poéticas que seguem por veredas distintas.
Já
o Partido Comunista, o Centro de Cultura Popular (CPC) e as lutas dos anos 1960
alimentaram uma arte que secava, mas engajou-se e renasceu. Ferreira Gullar
escreveu poesia da melhor qualidade, como quando reconstrói a captura do Che na
quebrada do Yuro (no livro e no poema Dentro da Noite Veloz). Gullar pegou o
trem da revolução, mas não seguiu viagem até o fim, era mais artista do que
revolucionário. O contato do poeta com a esquerda foi uma solução de
continuidade³ para uma poesia que secava. As lutas sociais irrigaram a arte de
Gullar, garantiram temas e matéria bruta ao poeta, que, por sua vez, pagou um
preço alto. É aqui que o cinema de Sílvio Tendler conduz por onde a luz é pouca.
Apesar
da ótima poesia engajada que escreveu, apesar da atuação política, Gullar
compunha um segmento que Nelson Rodrigues definiu como a “esquerda festiva”.
Eram mulheres e homens com militância política e boêmia. Ocorre que, por um
conjunto de circunstâncias trágicas e cômicas, Gullar foi apontado como
dirigente do Partido, mesmo sem sê-lo de fato. Resultado: acabou empurrado para
a clandestinidade quando veio o golpe empresarial-militar de 1964. O poeta
pagou caro pelo engajamento que renovou sua arte.
Gullar
passou pela escola de formação de quadros da URSS. Foi para o Chile e teve que
fugir depois do golpe de Estado empresarial-militar que assassinaria milhares
de homens e mulheres. Passou pelo Peru, não se adaptou e foi para Argentina, e
teve que fugir de outro golpe de Estado empresarial-militar-assassino.
Gullar
escreveu o Poema Sujo na Argentina. Curioso notar que, em Buenos Aires, o poeta
fala de São Luís. O exílio se tornara insuportável. Gullar afirma que escreveu
como quem vomita palavras, como se fosse o último poema, o último suspiro, o
último arroto. Ele não retrata diretamente as lutas de seu tempo, prefere
explorar espaços e cenas ocorridas em São Luís, décadas antes: “a cidade está
no homem que está em outra cidade”. No auge de seu engajamento, correndo risco
de ser sequestrado ou morto, o poeta se definia como “combatente clandestino
aliado da classe operária”. O adjetivo “aliado” diz muito, Gullar não se sentia
parte da classe operária, colocava-se apenas como “aliado”. O Poema Sujo
transcorrer em São Luís do Maranhão também é sintomático. Parece um exílio do
exílio, uma fuga uma fuga, uma tentativa de recomeçar.
Gullar
declamou o Poema Sujo num encontro em que estava presente Vinicius de Moraes,
que trouxe os versos para o Brasil. O poema foi impresso, distribuído, lido,
editado e, finalmente, lançado sem a presença do autor, num ato político contra
a ditadura empresarial-militar brasileira.
Assim
como há muitas noites dentro da noite, há diversos registros de entrevistas e
vídeos sobre e com Ferreira Gullar, mas nenhum mostra o homem de tão perto
quanto a série de Silvio Tendler. Se é verdade que as lutas sociais dos anos
1960 adubaram uma poesia que secava, como sustento, é também verdadeiro que a
participação política do poeta custou caro: a família fugindo de país para
país, separações, prisões, torturas, suicídio de amigos. O tempo rugia na fuça
do poeta. Gullar revela que, provavelmente, só escreveu o Poema Sujo porque
estava exilado, mas, se pudesse escolher, preferiria não ter escrito. Pergunta
inevitável: o poeta teria se engajado nas lutas do seu tempo se soubesse o
preço que pagaria?
No
final da vida e distante da revolução, Gullar assinou colunas reacionárias na
mídia empresarial. Mas o tempo e o desaparecimento do poeta separarão as
colunas de jornal da poesia de primeira. Neste ponto Tendler recorta e costura
acontecimentos, constrói abrigos e alerta os precipitados. A série “Há muitas
noites na noite” serve como para-raios. O colunista é um cachorro morto, fácil
de chutar, que, por isso, nem aparece; mas o poeta é grande, sua poesia está
entre o que se escreveu de melhor. O Poema Sujo é um dos maiores da poesia
brasileira (em todos os sentidos). A sacada do documentarista é filmar a
cinebiografia do poema, porque os versos são a melhor fala sobre o poeta e seu
tempo.
Se
é verdade que ao se aproximar das lutas sociais Gullar renovou sua arte, como
suspeito, é também verdadeiro que tal aproximação lhe foi pesadíssima. Tendler
capta bem esta dimensão, alertando críticos superficiais e linchadores de
plantão. Entre o sujeito que foi da “esquerda festiva” para direita fim de
festa, há um crítico de arte respeitável, um perseguido político e, sobretudo,
uma poesia de primeira qualidade. Ao reapresentar o Poema Sujo, seu autor e sua
história, Tendler recoloca Gullar no devido lugar: entre os grandes. Então,
cuidado: há muitas noites dentro da noite!
Notas:
1)
Quando não houver indicação de autoria, as palavras e versos entre as aspas são
de Ferreira Gullar, como na epígrafe.
2)
O verso presente no Poema Sujo é “Numa noite há muitas noites”; Tendler optou
por “Há muitas noites na noite”; resolvi usar “Há muitas noites dentro da
noite”, porque se adapta melhor ao objetivo do texto e porque remete a Dentro
da Noite Veloz, que, se a minha hipótese estiver correta, marca um salto de
qualidade na poesia de Ferreira Gullar.
3)
Solução de continuidade certamente casual e inconsciente. Ou dizendo de outra
forma: o poeta não se aproximou das lutas sociais com a intenção deliberada de
revigorar sua arte, as coisas aconteceram naturalmente.
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