EXAGEROS
E VERDADES EM CAZUZA
Ainda garoto acompanhei
pela imprensa a luta do cantor Cazuza, em seus últimos momentos. O Jornal do
Brasil, por exemplo, relatou internações, tentativas de recuperação, quilos
perdidos... A revista Veja em de abril de 1989, mantendo sua tradição de estupidez,
trazia na capa: “Cazuza, uma vítima da AIDS agoniza em praça pública”. O que
poderíamos esperar da nossa mídia além de sensacionalismo? Passados dez anos,
Caju que andou “pelo inferno e céu de todo dia” merece ser lembrado por sua
obra e, consequentemente, por sua vida, pois uma nunca esteve dissociada da
outra. Tentemos então fazê-lo.
Muitos adjetivos e
definições poderiam tentar classificar Caju, mas ainda assim faltaria muito.
Bonito, alto e forte, teria ele sido um “Menino do Rio”? Ou então foi um
“exagerado” que aos onze anos declarou-se comunista convicto? Rico e mimado,
foi ele mais um “filhinho de papai”? Ou então era uma “Metamorfose Ambulante”,
que no Rock in Rio/85 cantou abraçado à bandeira do Brasil, mas que três anos
depois, no Canecão, cuspiu na bandeira nacional?
Toda arte em Cazuza
consiste na realidade vivida pelo artista e depois expelida em verso. Assim,
seus três primeiros discos, que fez com o Barão Vermelho são o retrato nítido
da decadência da sociedade vigente, a qual Caju compunha. Os amigos frustrados de
balada que não são seres humanos sinceros, mas sim personagens mascarados
incapazes de pensar e sonhar coletivamente: “Sempre em bandos de quinze, vinte/
Tomamos cerveja e queremos carinho/ E sonhamos sozinhos”. Os porres homéricos:
“Da privada eu vou dar com a minha cara/ De panaca pintada no espelho/ E me
lembrar que o banheiro/ É a igreja de todos os bêbados”. As curtições “viagens
tão óbvias/ loucuras tão sóbrias”. O sexo como fuga da realidade, vazio, sem
diálogo: “Se prepare, estou loki/ Só precisas de um toque”; ou então, “Há dias
eu planejo/ Impressionar você/ Mas eu fiquei sem assunto/ Vem comigo, no
caminho eu explico/.../ Há dias com azia/ O remédio é o teu mel”. Frente a
tanta mediocridade Caju sonhava “transformar o tédio em melodia”.
A partir de Exagerado,
seu primeiro disco solo, Cazuza começava a amadurecer intelectualmente. A
alienação é descrita: “Eu acredito nas besteiras/ Que leio no jornal/.../ Mas
minha vida sempre brinca comigo/ De porre em porre, vai me desmentindo”. Com
Lobão, em “Mal Nenhum”, Caju responde aos sensacionalistas: “Não escondam suas
crianças/ Nem chamem o síndico/ Nem chamem a polícia/ nem chamem o hospício,
não/ Eu não posso causar mal nenhum/ A não ser a mim mesmo”. À mãe Caju dedicou
versos pungentes: “Você nunca sonhou/ Ser currada por animais/ Nem transou com
cadáveres?/ Nunca traiu teu melhor amigo/ Nem quis comer a tua mãe?”.
Após exagerado veio “Só
se for a dois”, e depois “Ideologia”. Neste disco, já sob o efeito da doença
que viria a vitimá-lo, Cazuza surgiu como um novo homem, mais sensível e menos
superficial, Caju mergulhou de cabeça em
grandes feridas. Retratou sua geração de revolucionários de boteco que queriam
mudar o mundo, mas passaram a assistir a tudo em cima do muro, em
"Ideologia". Viu a cara da morte e nos contou em "Boa
novas". Cantou o amor muito mais lírico e real em "Minha flor meu
bebê" e "Faz parte do meu show". Esnobou caretas e covardes no
"Blues da piedade". Manifestou sua revolta concreta e metafísica em
"Um trem para as estrelas". Em "Brasil", Caju sintetizou os
quinhentos anos absurdos dos que não foram "convidados para a festa",
perguntou por quem "paga para a gente ficar assim" e finalizou
dizendo que não trairia o Brasil.
Em 89 veio o disco ao
vivo “O tempo não pára”. Nesse mesmo ano Caju lançou o álbum duplo “Burguesia”.
Em “ Burguesia” Cazuza cantou seus últimos momentos e seu estado de espírito,
afirmando-se uma “Cobaia de Deus”: “Se você quer saber como eu me sinto/ Vá a
um laboratório, ou a um labirinto/ Seja atropelado por esse trem da morte”. Mas
“Burguesia” não foi um disco triste, foi em verdade um álbum que explicitou os
paradoxos que atormentavam Caju. Sua origem burguesa foi cantada. E também a
bissexualidade reprimida: “E as estrelas ainda vão nos mostrar/ Que o amor não
é inviável/ Num mundo inacreditável/ Dois homens apaixonados”. No ano de 91
a Polygram lançou o álbum póstumo "Por aí" encerrando o ciclo do
"exagerado".
Agenor de Miranda Araújo
Neto, o Cazuza, morreu em 07 de julho de 1990, aos 32 anos de idade. Poço de
contradições, Caju não chegou a alcançar uma ideologia coerente. Em verdade,
ele não foi comunista, até porque não teve condições materiais de o ser. Também
não foi ateu, mas sim um revoltado metafísico, Caju nunca negou Deus, negou, na
realidade, a criação divina: “O reino dos céus é do chato/ Do chato do chato/
Do otário e do cagão”. Cazuza foi um letrista da realidade, “do inferno e céu
de todos os dias”. Foi um “exagerado” que esnobou caretas, covardes, burgueses,
religiosos, deuses... E principalmente a AIDS, o preconceito e a curiosidade
mesquinha dos medíocres. Na exata medida em que surgiam piadas, comentários,
fotos etc., todos maldosos. Caju respondia compondo, cantando, enfim, mostrando
a cara. Na exata medida em que seu estado clínico se deteriorava, Cazuza respondia
afirmando a vida e sua vontade de viver.
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